Artesão do campo, Sérgio Donófrio é o verso da Calusne Farms
Artesão do campo, Sérgio Donófrio é o verso da Calusne Farms
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Se poeta fosse, à moda do maior deles, o lisboeta, Sérgio Donófrio seria um dos heterônimos da Calusne Farms (Campinas/SP). É ele o guia de um tour pela propriedade familiar (o negócio está na terceira geração), no outono de 2016, antes da chuvarada e da friaca que abateu uma enormidade de produções Brasil adentro. A conversa com Diálogos Comestíveis brota miúda e potente, tal o tamanho e o sabor dos brotos que despontam na estufa, no tempo deles. Post checado em 02 de março de 2021.
"Os chefs, quando vêm aqui, experimentam de tudo. Essa é a sorrel", introduz Donófrio olhando para um tanto de milagre repousado na palma da mão. A planta, também conhecida como erva azeda ou azedinha, é empregada "pacas" nas cozinhas italiana e francesa. No Brasil, "vai da moda". Vai da mão do produtor e da demanda. É uma lógica punk como a das PANC (plantas alimentícias não convencionais).
Na estufa dos brotinhos, assegura que só há substrato dos bons, nenhum produto químico e... água - a irrigação de toda a propriedade deriva de fontes naturais e de um sistema sustentável que Donófrio engendrou para captar o que cai do céu ou para tratar o que já serviu a alguma plantação.
"O amaranto roxo que a gente trouxe dos Estados Unidos pegou bem aqui. Até tem semente no Brasil, mas é verde", aponta pra um lado. "Essa planta é parente do Caruru. Dá um pendão de semente bonito. E, olha essa beterraba amarela! Se você experimentar, garanto que vai sentir um gosto pronunciado. Como todos os brotos produzidos assim, porque neles estão a potência do sabor e as propriedades nutricionais. Tem mais cálcio, potássio, fósforo. Olha aqui o broto do alho poró! Ele já é bastante procurado. O que fica depois da colheita é replantado para produção do alho poró mini e do que todo mundo conhece e usa. Sabe que o broto germinado tem menor durabilidade e sabor mais sutil, né? É que esse tipo de produção, que é feita n'água, concentra mais nitrogênio", explica seguro, já mirando a outra banda da estufa onde estão, também, o rabanete, a mizuna roxa (da família da couve), a ciboulette e mais um tantão de alimentos. O desejo é que cada variedade vire ingrediente nobre, integralmente aproveitado, nas mãos de um cozinheiro.
"A gente faz as nossas experimentações aqui pensando em inovação, em exclusividade e em sustentabilidade. A Sílvia (irmã dele) vive no encalço de sementes nos Estados Unidos e nos manda. A diferença é que, lá fora, o incentivo do governo aos testes (pesquisa) e ao produtor (agricultura) é bem maior. No Brasil, para que as novidades cheguem e sejam testadas por nós, custa caro. Fica mais difícil de trabalhar", situa. A parte dele, ele faz. Ainda que até as parcerias com instituições de pesquisa esbarrem na burocracia, o produtor assunta com elas.
A hortelã de duas cores (que apresenta sabor sutil de abacaxi e, por ora, é usada na decoração de sobremesas, veja só), o amaranto já citado e muitos etc já vingaram e estão disponíveis. A internet ajuda muito nas pesquisas, santo big data. "E a gente vai trocando idéias e testando tudo o que pode, numa lógica de erros, acertos, persistência e muito trabalho, safra atrás de safra", pondera.
"Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta" (Álvaro de Campos). Pois Donófrio, espécie cara de poeta do campo, vive em desassossego. Colhe opiniões tanto quanto colhe seus frutos. Ouve os cozinheiros. Matuta em silêncio até o eureka vingar. Cobra que lhe deem tarefas. E delega desafios.
Faz dez anos, por exemplo, que teima em produzir minilegumes. E tudo começou por conta do pedido de um chef de cozinha. As boas ideias brotam sempre nas melhores cozinhas, mas nem todo gênio das panelas dá conta de entender que, para que a produção de uma nova variedade seja constante e viável ($), há que respeitar duas coisas: a palavra e o tempo da natureza. "Até que consiga desenvolver uma espécie, preciso de ao menos 45, 60 dias de zelo. Depende. Quando o produto está no ponto ideal e preciso colher, preciso da garantia da demanda para vender. Se não for assim, perco meses de trabalho", pondera.
A parceria com empresas produtoras de semente já rendeu boas empreitas, a exemplo da estabelecida com a Sakata, que trouxe para o Brasil a abóbora Butternut, desenvolvida pela Calusne Farms e comercializada, a bom preço, em hortifrutis da região. Desde outubro de 2015, quando foi lançada por aqui, num jantar a dez mãos no Cayena Bistrô, capitaneado pela chef Manuella Delatorre, os cozinheiros ficaram enlouquecidos pela versatitilidade do produto. Pudera. O ingrediente é aplicável das finger food à sobremesa. No varejo, porém, a briga é grande. Na ponta mais frágil (a do produtor), o tempo, senhor de todas as coisas, determina cautela e observância ao que virá adiante. "Quando alguém pede exclusividade na comercialização de um alimento, toda a cadeia produtiva precisa se readequar", sintetiza Donófrio. Consumo consciente tem a ver com esse trecho, sim. De quem, o quê, onde, por quê, como e quando consumir?
Sazonalidade
A expertise de Donófrio é inquestionável. A percepção do consumidor final sobre o que ele faz, ainda leviana, em muitos casos. Sério mesmo que tem gente que acredita que "tudo dá" o ano inteiro e que, de janeiro a janeiro, come-se o que quiser no restaurante estrelado (ou não) que houver? Respeitar a sazonalidade, em tempos de revisão de métodos e de aporte tecnológico parrudo, é ouro. Sazão não está para Sazón. E para ter tempero, é preciso ladear-se ao produtor, camarada.
"O grande entrave de a gente ter uma produção de minilegumes em sequência, não em escala, porque não é meu interesse por ora, é justamente a demanda que rareia. Se eu não colher e tornar a semear e a cultivar para manter a produção, perco", pontua Donófrio. E o que ele faz com o excedente, então? Muda a estratégia de venda.
"Felizmente, tem cozinheiros antenados e interessados nos produtos disponíveis, frescos, de época. Sejam mini, grandes ou brotos", comemora. O excedente dali vira oportunidade acolá. De mini alho poró e mini funcho sempre tem mestre cuca afim. "Toda planta que cresce enterrada não dá para fazer muda. Se dá uma chuvarada, esquece. É o caso da cenoura. E, sabia que, no inverno, o espinafre vai bem, porque é uma planta que gosta temperatura amena? Experimenta tocar a produção aqui na região fora da estufa? Não dá, é sensível", salienta, didaticamente. Sim. Se você tem uma toque blanche e pensou em visitar a Calusne, sim. Agende. Vá.
PANC
"Uma coisa que aconteceu logo depois que você escreveu sobre as PANC foi que a procura aumentou. Durante uma semana houve encomendas de chefs de toda a região. Mas as pessoas esquecem que serralha, beldroega, azedinha, poejo e outras tantas plantas continuam comestíveis e, sem a demanda nos restaurantes, não há demanda para o produtor", compartilha Donófrio. A ora-pró-nobis que, em maio de 2015, era uma moita acanhada, se multiplicou. Virou uma cerca viva, divisora de dois mundos. Acerca, Donófrio se encanta ao dizer das flores, lindas. Em uma noite brotam, no dia seguinte defenecem. A metáfora não poderia ser mais precisa.
Por sorte, há chefs que criam situações. Criam demanda. Tipo o festival franco-mineiro do Green House (Indaiatuba/SP) deste ano. Ora-pro-nóbis e taioba voltaram aos pratos do restaurante por um período determinado. Sorte do comensal que se propôs a reeducar seus gostos. "A taioba, comecei a desenvolver no ano passado, quando a gente falou das PANC. Ela demora para chegar no tamanho ideal", conta. O jambu paraense também vingou na Calusne Farms (ainda não dá de montão, o trem é sensível) por demanda de uma chef. Viviane Moraes (Estação Marupiara), provocada por uma jornalista atrevida (essa que escreve aqui em Diálogos), em 2012, se inscreveu no "Concurso Chef Paulo Martins/ Talento Ao-Vivo". O cozinheiro Ueliton Amaral, até hoje na casa, que completou 10 anos em 2015, desenvolveu a receita do Nhoque de Castanha-do-Pará, com Ragu de Pato no Tucupi e Jambu Crocante. O prato levou o segundo lugar, a receita embalou análogas no restaurante de Joaquim Egídio e as sementes trazidas na bagagem... Você já sabe onde foram parar.
Tem outros exemplos. Tem outros exemplos instigados por Diálogos. Tem gente dando exemplo. Tem chef se redescobrindo cozinheiro. Fato é que é preciso ir para cozinha e testar todas as partes do produto. Conversar com produtores. Estudar. Do chuchu, pode-se aproveitar até o tubérculo. As flores da abóbora, que se perdem rapidamente no pé, mas se conservam bem se colhidas e refrigeradas, podem ser recheadas, empanadas, consumidas. Dá trabalho pensar no improvável. Mas é tão mais gostoso e sustentável, né não?
Sustentabilidade
Reaproveitar é verbo conjudado em todos os cantos da Calusne. Pneus, caixas d'água, telhas que se formam com os temporais, caixas de peixe, quase tudo serve para acomodar mudas e delimitar as produções. "Há como deixar tudo isso bonito e usar na horta de casa, de um hotel ou de um restaurante. É só trabalhar essa ideia", provoca Donófrio.
A matéria orgânica, nem seria preciso dizer, serve à preparação de substrato natural e rico, balanceado conforme "a música" de cada alimento. "E tem mais. Se um pé de qualquer coisa brota no meio de determinada produção, não retiro. Se foi bem ali, onde surgiu naturalmente, aposto que me dará boas sementes, que poderão ser usadas depois", entrega.
História
Foi na década de 1960 que a família Calusne começou a semear uma nova maneira de devorar o mundo. Assentado numa propriedade de reforma agrária (o nome do bairro onde está a empresa, aliás, é Reforma Agrária), a primeira do Estado de São Paulo, Pedro, avó de Sérgio, fincou bandeira. Antes empregado de fazendas de café e algodão - as tais monoculturas - passou a produzir algodão. Era o savoir faire, uai. Isso até um vizinho dar-lhe a ideia de trabalhar com figo. Foram mil mudas na primeira leva. E uma parte do sítio servia às uvas, porque outro vizinho, que saíra de Jundiaí, sabia como cultivá-las. Foram 30 anos dedicados às frutas.
Sérgio, agora, aos 49 anos, lembra que era um garoto recém-formado no curso técnico de mecânica industrial querendo trabalhar sério no sítio, já administrado pelos sete filhos do avô. Palmilhava o caminho das ideias novas, ia pela sombra e estava louco para arregaçar as mangas e fazer dinheiro. Os figos já estavam em fase de exportação. Havia 40 mil pés de figueiras plantadas, 40 famílias trabalhando. "Olha só. Quem ajudou meu avó a cuidar do sítio foi meu pai, que era genro dele, mas tido como filho; e a minha mãe, que era a filha mais velha. Eu e as minhas irmãs, a Sílvia e a Selma, somos os netos mais velhos da família", detalha.
Naquela época, trabalhava no campo, fazendo de tudo um pouco. Na parte da tarde, fazia a contabilidade do negócio, na caneta. Até achar que a tecnologia devia servir ao sítio. "Comecei a trabalhar com computador 286, aprendi tudo sozinho, queria automatizar as coisas", situa. Depois de uma temporada curta na Fazenda Bradesco, o tio que administrava o negócio deu a ele carta branca para inovar, finalmente.
"Sei que um tempo depois, eu comprei a parte dos meus tios e toquei o negócio com a minha família. Meu pai, que sempre cozinhou, me incentivou a plantar aspargos verdes. Desenvolvemos a ideia e meu tio me ajudou a vender o produto. Afinal, quem consumia isso 30 anos atrás em Campinas? Ah! Eu sei que ele visitou grandes restaurantes e hotéis de São Paulo e a coisa começou a acontecer. A demanda foi tanta que a gente passou a importar aspargos do Peru para atender os restaurantes o ano inteiro. Logo começamos a receber demandas de chefs estrangeiros por endívias e outras coisas diferentes. Começamos a importar da Bélgica, de um sujeito que era de família Holandesa. Holambra, agora, tem endívias de montão e é referência no mercado. Na minha vida, foi e é assim: um sempre ajudando o outro. Sempre semeando o melhor caminho para todos", define. Há 16 anos, os cozinheiros da região podem contar com a família Calusne.
Se foi assim, sempre passando o bastão ao outro, como num revezamento de responsabilidades, que Sérgio colheu bons frutos (a quarta geração dos Donófrio já está sendo preparada para prosseguir com a missão), nada mais justo que o esforço hercúleo fosse reconhecido. A Calusne Farms já recebeu uma série de prêmios, menções honrosas e títulos. Sérgio, idem. Mas será em 20 de julho o improvável selar das travessias que não cessam. Pelo trabalho de artesão do campo e por todos os simbolismos que encerra em sua própria história, o produtor foi escolhido para participar do revezamento da tocha olímpica, que passará por Campinas.
Para não dizer que não falamos das flores
Até chegar à coleção de flores comestíveis que dá conta de comercializar, Donófrio recorreu à literatura estrangeira, sobretudo a norte-americana. Isso porque a existente aqui não é suficiente. Para não dizer rara. Brinco de Princesa, Nigela, Amor Perfeito, Flor de Mel, Hana Nirá, Capuchinha, Rúcula Selvática, Manjericão Sweet Thai e outras tantas vão bem, quase sozinhas. O que custa caro são as sementes (fortunas, às vezes). O sabor de muitas é incrível. Das folhas, idem. Coma de tudo! Faz bem!
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SAIBA MAIS
A Calusne Farms produz ervas, hortaliças e flores comestíveis para restaurantes de toda a região de Campinas. Atende também a instituições de ensino parceiras e escolas de gastronomia. A lista, que já é grande, tende a se avolumar conforme a economia se recupera. O trabalho de semeadura, vê-se, requer anos e anos de prática. Décadas, no caso.
A colheita é programadinha, feita periodicamente, diariamente. Feitos os pedidos num dia, o processo de porcionamento dos insumos começa às 3h e segue até às 11h. É duro. Tão puxado quando a lida na cozinha. E preza pelo respeito ao ingrediente do mesmo jeito, só que no início da cadeia. Tudo que sobra não falta à mesa de quem mais carece.
O projeto Mesa Brasil, do Sesc, por exemplo, conta com os insumos dos Donófrio para abastecer seu banco de alimentos contra a fome e o desperdício. A marca, que já participou de diversos eventos e festivais gastronômicos (vide Gastronômade Brasil, Love My Salad e outros), estará na Feira de Produtores do 1º Festival Gastronômico Itinerante Sabores da Terra, em Indaiatuba, no dia 26 de junho, no restaurante Amadeu, a partir das 11h. Também estarão por lá Fazenda Atalaia (Amparo/SP), Cervejaria Landel (Barão Geraldo), Monte Cogumelos (Valinhos/SP). Você vai?
Pensatas donafrianas
"A crise acentuou a criatividade e a busca por pelo emprego de produtos não convencionais. Mesmo os chefs mais conservadores estão saindo da zona de conforto e se propondo a trabalhar com ingredientes novos".
“Há coisa de dez anos, eram os chefs de cozinha os idealizadores de receitas e detentores máximos do conhecimento. Com a internet e os programas de TV voltados à gastronomia, a informação ficou mais acessível. Com isso, novos ingredientes e técnicas. Isso abre muitas possibilidades de produtos”.
“O mercado gastronômico trabalha como a moda. Pesquisar e detectar tendências, novas formas de utilização de produtos e novos ingredientes é obrigação do produtor”.
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