Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Tanto se discute o quão "afetiva" é a cozinha brasileira, hoje. Há ceticismo em todo lugar. Inclusive nas redes comunicacionais da gastronomia e nas redes sociais que fomentam toda celeuma. O fato é que a cozinha afetiva nos afeta tanto quanto se deixam afetar uns aos outros os chefs de cozinha quando criam em coletivo.
Ambas as colocações derivam de conteúdos ricos em nutrientes: "Ensaio Sobre a Cozinha Afetiva", de Jane Lutti (Editora Labrador, 2021). E "Redes Comunicacionais na Gastronomia: os processos criativos dos chefs de cozinha", tese de doutorado em comunicação e semiótica de Tatiana Lunardelli (2018). Tenho a sorte de ter ambas as autoras por perto.
Juntas, criamos pontuações acerca do que é ser (um cozinheiro) moderno no Brasil em 2022. Elas nos emprestaram 20 palavras, cada uma. E, a partir delas, desenvolvemos peças que, apresentamos agora e, entendemos, dialogam entre si.
Ao lançar palavras em nossa direção, Tatiana nos lembra, sobretudo do inacabamento e das redes culturais - intrínsecos do processo criativo na gastronomia. A memória, neste sentido, é como a atadora de nós entre o cozinheiro e o comensal. Não que não ocorram tensões, ao contrário.
Mas, adiante dos olhos e quando levamos algo à boca, o que pulsa e reverbera são as associações que fazemos com o que nos redesenhou, nalgum momento. Clareia a noção de que a "culinária afetiva" não tem esteio no seio familiar, necessariamente, mas no refazer e no repensar, com imagens atuais, as experiências do passado.
Talvez, por isso, ela defende, "atingir num prato a lembrança da comida de casa seja impossível". Há uma dimensão estética e uma dimensão estésica na comida, ou seja, uma dimensão do design do prato e outra do sentimento que aquela preparação evoca.
O prato autoral de um cozinheiro é parte de um projeto inacabado do qual muitos outros criadores fazem parte - até quem come altera a proposta inicial. Nada está "pronto", nunca. E entre o pensar e o comer, há o "afeto", que Jane suscita em seu livro.
Para a escritora, que é jornalista por formação, "receitas e sabores nos imprimem memórias, registros mnemônicos capazes de fortalecer e fixar a imagem que se tem de uma determinada pessoa, circunstância ou acontecimento. Por isso, impactam, gravam, fortalecem, marcam, registram por meio do sabor e do momento".
Além disso, "é afetiva quando a dinâmica que a cozinha instaura promove reflexões sobre suas relações, seu meio social, sua consciência nas escolhas cotidianas, impactando emocionalmente seu jeito de ver a vida e criando registros".
É neste ponto de convergência, que parte de infinitos pontos de vista dialéticos sobre o "prazer" de comer, que alinhavamos ambos os textos. Como nos lembra Jane, toda tomada de decisão sobre o comer modifica a maneira como percebemos o mundo. "Isso porque o ser humano não se alimenta somente de comida, mas também de beleza e percepções sensoriais", diz ela. Se tomada por "obra de arte", ou "arte", a criação de um chef, se bela, é muito capaz de agradar aos sentidos. Fazer sentido é um outro processo.
INTERPRETAÇÕES OU RELEITURAS
Vivemos num mundo cercado de asperezas e ruidoso pelos abafados conflitos. Nas cozinhas profissionais, a disputa de egos é agigantada por outras espinhosas disputas: quem será reconhecido quando os holofotes midiáticos se apagarem? Quem fica e, por fim, sobrevive ao apagar das estrelas? Desde o início dos anos 2000, quando o "digitalismo" passa a se esparramar pelas telas e a redistribuir a arte (conceito que vem sendo disseminado pelo artista plástico catarinense Cristiano Chaussard), ficou mais fácil expandir a noção de "alta cozinha". Tem-se a ideia de "acesso a". Saciar o desejo de estar dentro da alta cozinha, nem tanto.
É preciso criar junto com, trazer referências de e junto a outros artistas e produções artísticas para dentro do prato. Promover-se a famigerada "experiência do usuário". Antropogarfar: deglutir os sentidos que há para além do gosto(so) e, assim, decidir pelo que fará bem para si e para as gerações que virão e para o meio-ambiente. É razoável crer, então, que um prato incrível, autoral, deriva menos de "inspiração divina" e mais de interação humana. Um chef também nasce de um processo de criação/ edição coletivo.
"A culinária é afetiva quando a dinâmica que a cozinha instaura promove reflexões sobre suas relações, seu meio social, sua consciência nas escolhas cotidianas, impactando emocionalmente seu jeito de ver a vida e criando registros" (Jane Lutti)
Desculpem a redundância. Todo comer somos NÓS quem desenhamos. Não é, Jane?
Por mais sofisticada e bela a moldura, o que nos interessa é o conteúdo. O conforto de uma comida boa não está no envoltório, mas no miolo, na ponta da língua. Quanto mais próxima das metáforas que nos fazem sentir, mais sentido faz o bocado.
Aqui, trouxemos o capitoné, uma solução à inglesa para deixar os estofados com uma cara mais artesanal, lá no início do período industrial (1840), para emoldurar a cena - tem muito cozinheiro servindo incômodo e chamando-o de comfort food.
Tomamos emprestado, então, os espinhos de um cacto, o desconforto dos carnívoros e uma das soluções plant based para a dietética flexitariana do hoje/amanhã. A objetaria de design antigo, a colher "velhinha" reconhecida, segue como vetor para novas descobertas.
Você a levaria à boca?
Obrigada pela leitura e até o próximo texto! Há mais abaporus por vir!
Leia agora o post Abaporu misterioso e moderno (dialogoscomestiveis.com.br).
Leia agora o post MatriX dos Diálogos Comestíveis (dialogoscomestiveis.com.br)
{module [160]}