Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Foi numa dessas andanças por Lisboa, já na cadência de versos heterônimos, que abri meia dúzia de livros, na Livraria Bertrand do Chiado, antes de encontrar-me com o chef Henrique Sá Pessoa. Havia marcado a entrevista de casa, Brasil, solo pátrio, meses antes. Carecia, contudo, de um porvir de tormentos doces, equilibrados por um bom café bem tirado. De tomar dose de coragem antes de bater meia sola à esquina, onde fica o restaurante galardoado com uma estrela Michelin do gajo, o Alma. Post checado em 02 de março de 2021.
Sim, são vizinhos e adormecem no esteio da vantagem imobiliária ambos os negócios: a livraria e o Alma - que funciona no antigo armazém da livraria, prédio do século 18. Uma pechincha manter-se ali, entre arcos de pedra originais, em pé direito alto, num conjunto arquitetônico tão histórico, quando se pretende manter uma empreitada única e sobreviver da restauração. Ah! A Vida Portuguesa, que eu prefiro chamar de o mais original "armarinho do design", vale a visita, na mesma Rua Anchieta - funciona no antigo armazém e fábrica de perfumes David & David.
De volta. Não tem mesmo uma mímesis do Alma por lá, por aí, por acolá. O Tapisco, irmão mais novo do grupo Multifood, que gerencia tudo, é outra coisa: ibérico, mais descontraído, lúdico até. E vizinho de porta e de soleira do icônico Pavilhão Chinês - bar/ museu de grandes novidades para todo tipo de entusiasta dos excessos. E, sim, gastaria e gastarei solas de sapatos intranquilas para explorar Lisboa quantas vezes for preciso. Turistar, sabemos, é preciso; mas, navegar assim, ao sabor dos ventos sem rosas, imperativo.
Antes de falar da gastronomia do Alma, vamos desnudar Pessoa, Henrique Sá, que reserva uma série de apartes curiosos e que mereceriam tardes de conversa infindáveis. Já ouviu falar do chef? Ele é tão expoente quanto outra leva de cozinheiros de duas gerações complementares.
Nela estão: Rui Paula (que mantém, no Porto, os restaurantes estrelados Casa de Chá Boa Esperança, considerado o restaurante mais lindo do mundo pelo cantor Sting, recentemente; e DOP), Vitor Sobral (do Tasca da Esquina, português de vanguarda que tem homônimo em São Paulo; autor de "As Minhas Receitas de Bacalhau: 500 Receitas"; Ed. Senac), Kiko Martins (anda surfando na onda fusion; é filho de pais portugueses, mas nasceu no Rio de Janeiro e mantém três negócios, entre eles O Talho - sinônimo para açougue, em Portugal); José Avillez (é dele o Belcanto, que tem duas estrelas Michelin, fica também no Chiado, em Lisboa, mas o rapaz tem um monte de negócios, já publicou livros e tem programas de TV); e José Cordeiro (talvez o mais carismático dessa leva midiática, segundo os portugueses, já participou do 1º MasterChef Portugal, em 2011; honra as raízes - angolano, mora na região de Trás-os-Montes; um de seus restaurantes fica na Praça do Comércio, o Bacalhau da Praça).
É imperativo, citar, ainda, Alexandre Silva. Como já contamos aqui no blog, ele também tem em si todos os sonhos do mundo. Desde dezembro de 2015, aposta em ingredientes locais e na estreita relação com o produtor em seu LOCO, que funciona na Rua dos Navegantes, na zona da Estrela, também em Lisboa. E que detém uma estrela Michelin. Quer ler mais sobre o trabalho dele? Releia o post aqui.
Fato é que Pessoa, Henrique, apresenta programas culinários na TV portuguesa há mais de 10 anos. E gosta das câmeras. O projeto multimídia mais recente chama-se "Manual de Instruções" - novo nome ao programa que, desde 2010, era "Ingrediente Secreto", que virou livro, também. A proposta, agora crossmedia, é revelar, mais "formalmente" que antes, técnicas de cozinha. Quer assistir a algum dos programas veiculados? Aqui!
O cozinheiro participou, também, do Chefs’ Academy, espécie de reality que ensinava a cozinhar - ou "a maior escola de cozinha do país". Assista no site do programa.
O cozinheiro faz poesia nas caçarolas, do jeito dele. Dá alma ao conjunto da obra portuguesa, com a mão carregada de afeto e as malas cheias de referências de além-mar, registrada em diversos títulos. Não. Ele não é só vizinho à Bertrand. Ocupa cantinho das prateleiras dela.
A Viagem do Salmão, por exemplo, lançado em 2015 pela Editora Leya Portugal (há versão e-book por aí), abarca turismo, literatura, fotografia e gastronomia. O chef e José Luís Peixoto, uma das vozes consagradas da nova literatura portuguesa, percorreram as rotas do pescado em Portugal, na Noruega e no Japão. O livro traz, ainda, cerca de 40 receitas, algumas delas elaboradas por chefs convidados. Como Rui Paula.
SINOPSE DAS ANDANÇAS DO GAJO
Henrique estudou gastronomia no Pennsylvania Institute of Culinary Arts, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, entre 1996 e 1997 - hoje, a instituição é o Le Cordon Bleu Institute of Culinary Arts. No início, a ideia era a de um intercâmbio cultural. Só que a cozinha o pegou em cheio e ele percebeu que a profissão lhe daria pretexto e contexto para conhecer o mundo. Começou a carreira em Londres, onde viveu até 1999. Rumou a Austrália e trabalhou no Sheraton on the Park, em Sidney. Em 2002, voltou a viver em Portugal e trabalhou em locais renomados. Em 2005, venceu o Concurso Chefe Cozinheiro do Ano, o mais prestigiado de cozinha em Portugal. Em 2008, passou a comandar programas culinários na TV. Houve quem dissesse que a carreira do cozinheiro estava mal - embora a televisiva deslanchasse.
Então, em 2009, criou o conceito do Alma, projeto próprio que, em 2015, mudou do bairro de Santos para o Chiado, queridinho, em Lisboa. Foi então que os críticos gastronômicos se deram conta do real talento do cara. Que também manda ver em hambúrgueres no Cais da Pedra, inaugurado em 2013; e num espaço que leva o nome do cozinheiro dentro do Mercado da Ribeira, em frente ao Cais Sodré (acesso pelo metrô); e no pequenino e charmoso Tapisco, de cozinha ibérica revisitada.
Agora, às entrelinhas. Abrir um negócio, no caso o Alma, em 2009, auge da crise econômica em Portugal, significava perder os aneis ou fortificar os dedos. E, convenhamos, ser reconhecido como o chef português do ano depois de uma temporada vivendo como estrangeiro em terras distantes fez com que Pessoa se fitasse no espelho. Redescobrisse os produtos portugueses que faziam parte do comer pátrio. E pode ser que ele nem soubesse como se aproximar das bordas de rio e de mar, à época. Mas, se a alma não é pequena...
Então, percebes e lagostas deveriam fazer tanto sentido quanto grãos com mão de vaca ou alheiras - iguarias de mesmo estirpe ou saco, escolha seu verbete, sazonais e originais. Daí haver pratos de 28 euros, cavaca e leitão. Esse último, receita do seio familiar, como se prepara e come na Mealhada, não duvide. Eu comi. A cavaca, sérião, foi uma surpresa no menu de um chef português, "oui", quando Pessoa decidiu incluí-lo no Alma. Que só virou o que é porque Pessoa teve apoios (investidores) e incentivo (reconhecimento).
NO ALMA
É verdade que provei do menu degustação antigo, já nos 45 minutos do segundo tempo da vida dele. Goleada. Foi no jantar do dia 14 de junho, seguinte à visita ao Tapisco e à entrevista com o cozinheiro. Na semana seguinte à visita, as propostas às ementas de degustação já eram outras (Caminhos, Origens, Costa a Costa) já eram outras. O menu Costa a Costa – 90 euros, cinco pratos - leva o mar português à boca. O Origens, ao cancioneiro português de receitas, à cozinha de casa. Três pratos, 70 euros. Era tarde. Alguns ingredientes do Origens, que quereria, haviam terminado. Chorare. E o Alma, composto pelos cinco pratos de eleição do chef, mereceriam mais horas de dedicação e apetite.
Rendi-me ao menu Caminhos (três pratos, eram 70 euros, agora são 80) que propunha um passeio pelo lado mais autoral e, por assim dizer, lúdico, do chef. Cercado de referências às cores que viu pelo mundo, às coleções de gentes, à Ásia que curte tanto. Deixei a harmonização a critério do sommelier Gonçalo Patraquim, que quase acabara de chegar à equipe.
Os pratos que provei, naquele dia (mais amouse bouche, pré e pós-sobremesa) entregam que Pessoa não é cheio de invecionices e afetação. É criativo e técnico, saboroso. A cozinha dele não é espaventosa, como dizem os portugueses. É íntima, embora esteja escancarada ao salão e que seus vinhos estejam igualmente todos expostos, na parede do salão principal.
De boas-vindas, crocante de tapioca com maionese de ostra e a alga cabelo de velha, acompanhada de shot refrescante de gaspacho clarificado com gel de azeite poejo, que tive o privilégio de degustar na companhia do chef, um dia antes. Depois, entretive a boca (amouse bouche) com gambas ao alhinho - devorei a cabeça crocante do camarão e o caldo tinha percebes bem perceptíveis. E, ainda, com amêijoas envolvidas em gelatina com purê de coentros versão de Bulhão Pato) e uns pimentos envolvidos em cinza comestível com coulis de pimentos e gel de limão (na foto acima, à direita, no quadrante superior). Depois vieram os pães de mafra de alfarroba e outros com manteiga fumada em flor de cerejeira com flor de sal, mais o azeite Virgem Extra, com extração a frio, exclusivo da casa. Com 1h de serviço, já estava feliz. E nem havia começado a provar dos pratos do menu, efetivamente.
Ao invés de dizer do que não mais há (e provei), prefiro dar a dica do que de novidade se entrega desde 30 de junho. Caso do Veja (peixe) dos Açores ao vapor, servido com arroz de amêijoas à Bulhão Pato e algas codium (32 euros), criado para a edição de 2016 do Festival Peixe em Lisboa e incluso no Alma de agora. Há também novilho com puré de raiz de salsa, texturas de beterraba e jus de estragão (33 euros) e presa ibérica na brasa, com chutney de banana, picles de cebola e maracujá, jus de melaço e especiarias. Saiba mais no site do restaurante.
Dicas. É preciso reservar mesa no Alma com antecedência de ao menos 30 dias. Tentei, não consegui reserva para meu grupo (éramos 20, inviável e incoerente. Ficamos sorridentes ao saber do Tapisco, vizinho, estar pronto a receber a nossa galera - alunos de gastronomia da Universidade São Francisco, USF). Compreendi. Consegui três lugares por conta de uma desistência providencial, 16h antes da visita. Pode-se ir no almoço e no jantar. Gasta-se cerca de 100 euros por um menu harmonizado (espumante e tinto, no meu caso). Caro? Há opções a la carte, bem mais "sussa" e igualmente deliciosas. Os pratos e o serviço honram o que se espera de um local uma estrela Michelin. Há bom custo-benefício. Curiosidades? Para entrar no restaurante, que tem um quê de aura de confraria, é preciso tocar a campainha e aguardar. Cheguei às 21h, pontualmente. Depois de quatro horas, saí cantando fados alegres em boa companhia.
NO TAPISCO
A experiência no Tapisco, inaugurado em fevereiro, no bairro Príncipe Real, é mais solta e tranquila que no Alma. Menos ritualística, melhor dizendo. Pelo óbvio. E igualmente adulta (frequentam os de 30 a 50 anos). Pode-se sentar à mesa (são 11, de dois lugares) ou recostar-se no balcão (10 assentos) para acompanhar a finalização dos pratos, sem neura. E não há dress code que impere. Pode-se falar mais alto que no Alma, onde sussurrar é quase natural, embora o jazz e o rock and roll saiam das caixinhas do som ambiente. É, como sugere o nome, um lugar para tapear - compartilhar porções à moda catalã (a esposa de Pessoa é de Barcelona). O menu é meio luso meio espanhol. Meio tapas meio petiscos. E há bons vermutes e vinhos para molhar as palavras.
Dá para começar com o pan con tomate (que não tem o alho esfregado, é versão), passar à salada de polvo com vinagrete e páprica defumada, render-se às croquetas de jamón ibérico, sequinhas, sequinhas... Experimentar algo da seção "ovos", caso dos huevos rotos con morcilla ibérica e, só então, ordenar algo que saia da brasa, mora? O bacalhau à lagareiro com batatinha assada é de chorar, de tão bom. E vão bem os legumes grelhados com salsa romesco por acompanhamento extra, ou a açorda de gambas, servida num tachinho (outra seção). Come-se muito bem e gasta-se o justo em duas horas de refestelo. Quer ver a carta?
O local não estreiou na cena lisboeta. Não teve soft opening. Abriu. Pronto. E manteve a soleira da antiga Padaria Taboense, que o imóvel acolhera antes, bastante conhecida e tradicional, recuperada pelo arquiteto Tiago Dias (que trabalhou no Alma, também).
Há dois vizinhos super descolados ao Tapisco - a Amazing Store, que vende produtos artesanais feitos com madeira reciclada, rebarbas de couro e cortiça, como bolsas, óculos, relógios (We Wood) e mais; e o Pavilhão Chinês, bar que faço questão de visitar na chegada ou na saída de Lisboa por encerrar o deslumbramento - sempre na hora da boemia.
São cinco salas - escolha uma - repleta de peças dos séculos 18 ao 20. Antes, o que funcionava ali era uma mercearia homônima. Vá para lá se quiser um lugar descolado e divertido para relaxar e beber ótimos drinks (se for comer, esqueça! Só há lanchinhos e petisquinhos, passe no Tapisco, que funciona das 12 às 24h; ou desça a mesma Dom Pedro V, cheia de bares bacanas). Fica pertinho do Miradouro São Pedro de Alcântara, repleto de gente até altas horas. Não aceita reservas.
SOBRE O QUE CONVERSAMOS ONTEM, NO ALMA
O gaspacho clarificado com gel de azeite poejo, referescante, repousou sobre a mesa da nossa tarde quente lá pelos 80 minutos de conversa. Era assim um pretexto para falar do comer de dali adiante, já que das intenções que levaram o chef até ali, seu Alma, estavam bem às claras. A primavera já desbotava seus tons; e os dias, mais longos, convidavam para ficar até serenar.
Henrique Pessoa, contudo, tinha de cumprir a ordem do próprio dia e os comestíveis dos nossos diálogos ficariam para o seguinte, graças a uma desistência de mesa, minutos mais cedo. Não houve métrica na prosa. Falamos, em verso, da contemporaneidade dos chefs portugueses e das idiossincrasias do que significa "ser sustentável". Poeticamente. E, com duas testemunhas atentas, fechamos um ciclo inicial de bendizeres.
Pessoa, em suma, é carismático e articulado. Sensato a ponto de dizer "não sei". O Alma, acertadamente, o encosta no topo dos "rankings". E a TV, como já faz há uma década, o aproxima da massa.
Pediríamos bis. Mas o fado esperava visita lá na Alfama. Saímos, infantes, ecoantes no Chiado. Para regressar logo, de fato.
DIÁLOGOS COMESTÍVEIS (DC) - Você abre o Alma e o Tapisco em Lisboa sem apagar a memória dos imóveis que acolheram seus projetos. São imóveis antigos, remontam ao século 18. Manter o nome do antigo estabelecimento na porta ou na calçada é algo bem português, parece.
HENRIQUE PESSOA (HP) - De fato. Em relação à padaria que havia antes do Tapisco, o que achei é que havia tanta história lá que tinha, sim, de preservar em meu projeto. Mas não por ter alguma relação com a panificação. É raro ter edifícios com tanta história assim. É como este em que estamos (onde funciona o Alma). Ele tem 300 anos.
(DC) - E como você conseguiu esse achado no Chiado?
(HP) - Veja, o dono do imóvel tinha isto alugado à Bertrand, que é a livraria mais antiga do mundo. Então, evidentemente, houve alterações de valores, mas chegou-se a pagar 45 euros por mês pelo aluguel. Só se pode aumentar a renda periodicamente conforme muitas regras. Quando houve a alteração às vendas, soube da disponibilidade. Minha filha vai à escola com a filha do dono do prédio, assim soube da oportunidade.
(DC) - Hoje, o prédio é uma moldura à ambição de um novo Alma? O que mudou?
(HP) - Quisemos preservar a história do local, por isso foi feito um plano de arquitetura. A garrafeira, por exemplo, remete às prateleiras de livros. E, agora, armazena vinhos. Quisemos evoluir o conceito do Alma antigo para um mais moderno, contemporâneo. Tivemos a visão de alcançar a estrela Michelin e conseguimos, em apenas 10 meses. Abrimos em novembro e, no ano seguinte, já veio o reconhecimento. Estamos numa das zonas de maior fluxo de pessoas da cidade, o que é excelente.
(DC) - Sabemos, há um lado perverso e outro incrivelmente ótimo em qualquer premiação. Na cozinha, ocorre, às vezes, a espera de um conceito estabelecido pela mídia. O prêmio muda a sua relação com a gastronomia, aumentam as cobranças? Como o reconhecimento da crítica e do público lhe afetam a alma?
(HP) - Claro, temos de continuar a trabalhar muito. O que fazemos é tentar não dar assim tanta importância ao prêmio. Em Portugal já sou conhecido há muitos anos por causa dos programas de televisão. Mas não podemos nos deixar iludir por essas questões. É preciso fazer o que se acredita. O Michelin muda muito seu estatuto como cozinheiro, sentimos a responsabilidade, sentimos a pressão, como em qualquer restaurante. O diferente, neste caso, é que o cliente passa por aquela porta com uma grande expectativa acerca da experiência que terá. E se depara com o troféu, com o preço, com o ambiente, com a resposta do chef. É assim também no D.O.M., no DOP, na Osteria Francescana. Alguns chefs já tem mais estatuto internacional, caso do Vitor Sobral, do José Avillez, de mim.
(DC) - Gostaria que dissesse das criações, especialmente no Alma, pontuando as escolhas sazonais e os ingredientes endêmicos, sempre que possível.
(HP) - Aqui, o que fazemos é uma cozinha de raízes portuguesas, mas contemporânea. Não sou exatamente um turista que vive a trazer produtos de fora, não me esqueço de que a identidade da cozinha deve ser reconhecida como portuguesa. No ano passado, iniciamos o menu Costa a Costa, por exemplo, que foi muito bem aceito e requisitado. Sirvo muitos peixes, muito bacalhau, muitos mariscos. Basicamente é uma homenagem a todos os ícones da costa portuguesa. Quando se vem cá, faz-se um passeio pelo mar, pelos sabores que só haverão aqui. Nada comparável ao que se come nas águas francesas, brasileiras, espanholas etc.
(DC) - A gastronomia responsável e sustentável é uma atitude, um caminho sem segunda opção para os cozinheiros mais coerentes?
(HP) - De alguns anos para cá, os cozinheiros tem focado muito no produto. Trabalho com fornecedores que respeitam a biodiversidade, sobretudo a do peixe. Observo tudo que esteja adequado à temporada. Logicamente, quero ter a carta para Costa a Costa durante alguns meses e preciso saber o que haverá disponível, fazer adaptações. O fornecedor, neste caso, é meu "diálogo marítimo", sabe tudo, é uma enciclopédia. Tentamos respeitar isso e usar pescados menos comerciais, como um peixe dos Açores, o Veja, de fundo, espécie de garoupa. Só dá nos Açores, na Costa da Madeira e no Senegal.
(DC) - Como você conseguiu esses parceiros?
(HP) - São fornecedores com os quais trabalhando há muitos anos e o que acontece em Lisboa é que a maioria dos cozinheiros preza muito por eles. E tentamos, dentro do que é cada cozinha, dar o nosso toque natural, autoral. Tenho olhado muito para as receitas tradicionais, revisitado-as.
(DC) - Que região portuguesa lhe chama mais a atenção? Afinal, você passou boa parte da vida mais distante que em terra e, hoje, se divide entre Barcelona e Lisboa.
(HP) - O Tapisco é claramente influenciado pela realidade espanhola. Para mim, só tem boa cozinha ou má cozinha. Se tem mais disso ou daquilo, depende muito da vontade, do que se quer fazer. Não gosto desses esteriótipos. Se viajo muito e sou super dado a novas culturas, tudo bem, entende? O que não acho que faz sentido é o excesso de influência. Estar em Lisboa, onde há excelentes produtos e querer usar tudo importado do Japão. Se quiser usar técnicas e lembrar de sabores japoneses, porque colheu referências e pretende referenciá-las, ótimo. Não se pode deixar uma pegada ecológica grande. O consumo precisa ser interno, entende? Alguns chefs, há 20 anos, saíam de seus países para cozinhar do outro lado do mundo, mas queriam usar tudo de seu país de origem. Importados, então, eram ótimos e o resto era uma porcaria, sobretudo se nacional.
(DC) - No Brasil, ainda há casos de gastronônomos e comensais que pensam assim, sem calcular as consequências das decisões de consumo. Há cerca de dez anos, muito por influência do saudoso Paulo Martins (Belém/PA), a cozinha brasileira começou, de fato, a olhar para os seus regionalismos. Antes, alguns franceses já nos davam uns chacoalhões, não é?
(HP) - O próprio Claude Troisgros foi para o Brasil com a expectativa de introduzir produtos brasileiros que eram únicos na cozinha francesa que dominava. Isso foi muito legal. Eu aqui faço um pouco do mesmo. O tamboril que utilizo, por exemplo, é português, mas a técnica de preparo do prato que concebi é tailandesa. É uma cozinha de fusão, de certa forma. Ocorre que todos os ingredientes que uso no prato são nacionais. Dou um jeito de conseguir. Os sabores únicos, que dependem de molhos especiais, por exemplo, esses sim trago de fora. A pasta de caril, por exemplo. Gengibre, coentros etc dão bem aqui. O cara que me fornece os brotos trabalha comigo tem bem uns cinco anos, começou no Mercado dos Chefs. A gente mantinha uma varanda e tinha lá uns brotinhos que ele nos dava a provar e sempre perguntava se havia algo que poderia nos fornecer. E, assim, foi nascendo um outro tipo de demanda. Hoje ele tem um meganegócio orgânico, atende a um monte de chefs e está sempre em busca de novos produtos.
(DC) - Como está a sua relação com os chefs brasileiros?
(HP) - Comecei a ir ao Brasil há uns sete anos. Fui a São Paulo, ao Rio de Janeiro e a outras cidades. Conheço o Alex Atala um pouco mais. Fui ao Mesa São Paulo Fortaleza, como convidado. Entretanto, desde que estou aqui em Portugal novamente, tive muitos brasileiros por perto. O Rodrigo Oliveira, do Mocotó, por exemplo. Estou pensando em retomar as visitas ao Brasil, apesar de a agenda estar um pouco complicada. Admiro imensamente a revolução que está acontecendo na cozinha brasileira. Muito parecida com a que está havendo em Portugal.
(DC) - A cozinha tradicional portuguesa tem aberto espaço aos chefs criativos da nova geração?
(HP) - Em termos gastronômicos, há uma raíz cultural muito forte. Noto que há uma abertura maior à contemporaneidade, à inovação. Ou seja, uma vaga à alta cozinha portuguesa de autor, algo que nem se falava a respeito. Havia uma cozinha tradicional familiar, bastante distante desta mais ousada, criativa, contemporânea.
(DC) - O chef Vitor Sobral não se encaixa exatamente neste descrição, embora seja mais old school.
(HP) - Sim, ele caminhou por uma linha muito autoral de início e, com o Tasca da Esquina, encontrou um formato mais próximo à cozinha dele. Foi uma decisão super acertada e ele é referência. Outros chefs foram por uma linha de alta cozinha, como fez o Avillez. Creio que estou no intermédio. O Alma é gastronômico, mas não tem nada de demasiado formal e sisudo. Creio que todos os chefs portugueses desta nova onda têm um cunho muito pessoal em suas cozinhas. Nenhuma casa têm relação com a outra. E isso é bom. Quando houve na Espanha o Ferran Adriá com uma assinatura muito peculiar, houve um fator influenciador. Havia uma linha de cozinheiros disposta a fazer esferificação e fumaça.
(DC) - Não tivemos movimentos gastronômicos muito fortes nos últimos anos, no mundo. Lá atrás, na França e na Espanha. A nouvelle cuisine e a cozinha de vanguarda marcaram a história. O que você enxerga de próximo no discurso do Brasil e no de Portugal?
(HP) - Tal como aconteceu aqui em Portugal, notei que, no Brasil, a cozinha molecular não pegou. Foi uma onda. Isso aqui passou mesmo. Mesmo Avillez tem, hoje, muito mais de localidade que de molecular. Essa cozinha, o fim das contas, não tem muito de sustentável, mas serve como técnica, como recurso. O problema é que os jovens estiveram enfeitiçaados com aquilo. Gelatinas e espumas. O Noma apareceu e, mais uma vez, houve um movimento para entender aquilo, aquele naturalismo tamanho que só podia ser aplicado em volta do próprio Noma. Aqui não saímos coletando plantas em volta do restaurante, embora respeitemos igualmente a localidade. Há quem espie chefs no Instagram e queira copiar as referências. Eu prefiro que as pessoas venham ao Alma e digam que eu não faço a cozinha mais vanguardista do mundo, mas que elogiem o sabor da minha comida, a experiência, que a entendam como ética e conectada a Portugal.
(DC) - Fazemos comida emotiva ou técnoemocional de verdade?
(HP) - Sim, emocionamos. É por isso que digo que entendo a proximidade do que estamos fazendo aqui com o que ocorre no Brasil. E que amamos o cliente brasileiro. Esse já entende o que é a cozinha portuguesa tradicional e, quando vem cá e vê um leitão ou um bacalhau, fica louco. E, claro, há aqueles extremamente exigentes que não vão se contentar com a simplicidade de uma receita familiar. Tem de ser algo diferente. Esses ingredientes emocionam mais que os alternativos, exóticos, dos quais não se tem referência, como muitas das plantas não convencionais. Comida, conhecida ou não, será boa ou ruim. Sem recorrermos ao que conhecemos, sem ter a memória afetiva, não há como emocionar. Não estou a criticar Reé Redzepi ou Adriá, mas a ressaltar o quanto ambas são muito pessoais. E que, por isso, não têm condições de ser replicadas mundialmente da mesma maneira.
(DC) - Quando você estará no Brasil de novo, portanto?
(HP) - Em breve, devo estar no Rio de Janeiro, em um evento fechado com outros chefs, da Mastercard. E, ainda, nas Cataratas do Iguaçu, no Hotel Belmond das Cataratas, noutro evento fechado.
(DC) - O que você pretende daqui por diante?
(HP) - A gente vai ficando mais velho, mais experiente. E mais certo do que quer. Acima de tudo, vou a sítios que gostaria de frequentar, como consumidor. E, o que estou cozinhando, quero comer em um restaurante. E às vezes falta isso. A ideia do Tapisco nasceu assim. Ia a lugares na Espanha super legais, animados, com boa comida. Mas sentia saudade dos sabores de Portugal, ao mesmo tempo. Então eu criei esse lugar que e um pouco dos dois países. Que tem um bom jamón, croquete e paella e onde posso ir com amigos. Posso beber meu vermute, ouvir uma música e relaxar. No Alma, foco meu trabalho na máxima expressão técnica. O maior desafio de um chef é surpreender pela simplicidade. O aparentemente banal, como o gaspacho, tem de ser incrível. Espera. Vens amanhã? Já. Vou pegar um gaspacho que acabei de fazer. Quero que prove.
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