Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Eudes Assis é caiçara de Toque-Toque Grande, cozinheiro e educador. É capaz de andar sobre as águas de São Sebastião (SP), multiplicar peixes e pães. Já o convidaram a ceifar mais louros para a carreira bem longe da borda do Atlântico onde aporta, desde menino, seus sonhos. Não quis. Prefere ser quem é com sua gente. Inventou seu cais. É defensor da pesca de cerco. Sustenta seu Taioba Gastronomia há dois anos, no peito e na marra, surfando na sazonalidade, ao sabor das marés. O amor, para ele, é azulzinho. De peixe azul-marinho. Post checado em 02 de março de 2021.
Arrumamos nossos #MotivosParaDialogar ancorados no anseio de que a ONG Mar Limpo chegue até ele, num zaz, adiante. Bem à moda zap-zap dos bytes velozes de hoje. Entre cozidos. Assis devolveu em áudio, depois de 22 horas de lida; e de uma semana de trocas enviadas às redes - ou indagações enviadas ao vento. Virou essa gostosa prosa, dedilhada aqui.
Falamos: 1) sobre sustentabilidade e Slow Food - não é lorota de pescador o que esse cozinheiro faz para manter a dinâmica "boa praça" de seu restaurante. 2) Sobre o Projeto Buscapé - onde ensina às crianças sobre a "gastronomia do futuro" (definição nossa - ora, a gastronomia sustentável não é a gastronomia do depois do amanhã? Assis discorre sobre ela). Também confabulamos sobre: 3) ser cozinheiro brasileiro e caiçara em solo pátrio. E: 4) da importância de valorizar-se o que é local - o que inclui Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC), como a própria taioba.
AH, SIM, ASSIS
Assis é um dos caras mais bacanas da nova gastronomia brazuca. Resumo da ópera dele, só para situá-lo, leitor, do percurso até aqui? Para já. Ele aprendeu a cozinhar com a mãe, dona Madalena. Ela, que costumava secar peixes no varal e estocar carnes em latões de gordura de porco, criou 14 filhos. Caiçara, ele viveu naquelas bandas de São Sebastião, estudou panificação e aprendeu, assim, a multiplicar seu levain.
Estagiou no grupo Fasano, juntou a grana que pode para se especializar em pescados e pães, em Paris, na Le Cordon Bleu. Conheceu mais de 20 países porque, um dia, se aventurou a cozinhar num iate de luxo. Deu de cara com o catalão Ferran Adrià, como sonhara um dia, por conta de um ar condicionado quebrado, graças a Deus, num braço de mar de Barcelona. Leia mais sobre a história do chef, publicada no site do Taioba, clicando aqui.
REDES LANÇADAS AO MAR
Como já citamos, Assis está envolvido com o Projeto Buscapé, organização sem fins lucrativos que, desde 2007, contribui à formação de crianças e jovens das escolas de bairros da Costa Sul de São Sebastião. A sede do projeto é em Boiçucanga, na base da Polícia Militar e o idealizador do projeto é o soldado William Silvério de Freitas. Assis já convocou mais de 80 profissionais de estirpe, como Alex Atala, Helena Rizzo, Rodrigo Oliveira, Jefferson e Janaina Rueda, André Castro, Christian Burjakian para ir até Boiçucanga e ensinar receitas e práticas culinárias para meninos e meninas de 7 a 17 anos.
DIÁLOGOS COMESTÍVEIS (DC) - Você certamente conversa com essa moçada sobre sustentabilidade e as consequências das ações antrópicas, chef. De que maneira faz isso?
EUDES ASSIS (EA) - Vi todo esse impacto pela quantidade de peixe que havia quando era criança e a de agora. É super importante falar de sustentabilidade para a molecada. A pesca caiçara no nosso litoral é uma pesca de cerco (de canoa), ecologicamente correta, secular (os indígenas já a utilizavam). Com ela, conseguimos tirar os peixes vivos e os pequenos, facilmente, se libertam das redes. Tartarugas, arraias e outros animais marinhos, quando vêm, são soltos pelos pescadores. Há consciência na região. É importante que esse tipo de pesca continue. Especialemente no Sul do Brasil, a pesca de arraste tem feito estragos, por exemplo. Falo muito às crianças sobre a importância da pesca sustentável ser preservada.
DC - Os saberes e sabores são preservados no Taioba Gastronomia. Você tem obstinação pelo "bom", além do limpo e do justo.
EA - Sim, somos super Slow Food. Só compramos produtos da região. As cerâmicas, o palmito pupunha do Sertão do Piavú, o artesanato que decora a casa, os forros de bambu, os peixes, o marisco da fazenda de Toque-Toque, a banana. Enfim, tudo é oriundo de produtores locais. Falo muito às crianças da razão de ajudar a economia local. Quando penso no peixe, quero ajudar o pescador que é meu amigo de infância e, também, o sujeito que forneceu a linha a ele, o que fez a canoa e assim por diante. Sempre temos uma roda de discussão e eles estão bem antenados. É bonito.
DC - As PANC da Mata Atlântica são prato cheio às aulas de culinária? Há algum projeto com elas?
EA - Uso muito a taioba, claro. Mas também o açafrão do sertão do cacau, o lírio do brejo, o coentro de folha. Eles tiveram muitas aulas sobre as PANC e sempre temos um chef convidado para ensinar coisas novas. Eles se amarram. Fazemos degustações e vivemos descobrindo o que a Mata Atlântica pode dar para a gente.
DC - Para a nova geração de cozinheiros, as PANC, talvez, sejam novidade. Mas os cozinheiros mais experientes sabem que, o que faz-se hoje em muitas cozinhas é o resgate da ancestralidade, das origens, da comida da vovó.
EA - Sim, antes de ler o livro do Kinnup (Valdely Kinupp e Harri Lorenzi) e aprender muito, eu já utilizava muitas PANC com minha mãe. Só não sabíamos desse nome: PANC. Sou caiçara de Toque-Toque Grande, meus pais tiveram 14 filhos. Sou o caçula. Na minha infância, morava em um bananal onde meu pai era caseiro. Não tinha luz elétrica. Minha mãe secava o peixe no varal e conservar a carne na banha, na lata. Voltei do curso que fiz na França contando a ela sobre o confit, nome francês para o que ela fazia. Ora, as técnicas são passadas de geração a geração. As PANC, também. O caroço da jaca, o rizoma do lírio do brejo, a jurubeba, o abricó e tantas outras "novidades" nós comíamos e comemos.
DC - O Taioba Gastronomia acaba de completar dois anos. No cardápio, coordenado por você e adulado pela chef Val Matos (esposa de Assis) há frescura alguma (no sentido da empáfia, porque do real frescor, com cheirinho de maresia, tem tudo e mais um pouco). Há os famosos bolinhos de taioba, a casquinha de siri, o PF Caiçara (posta de peixe empanado, arroz de taioba, pirão e banana assada), o arroz lambe-lambe e também sobremesas como o manjar branco com calda de ameixa ao vinho e mousse de manga com praliné de pistache. Sua missão é executar a boa cozinha caiçara comme il faut. Há novidade para breve?
EA - Acho mesmo o Taioba super especial. Ele é super simples e repleto de produtos extraordinários. E tudo bem. Não sei por que as pessoas acham o trabalho que executo tão inovador. Não vejo o Taioba como um restaurante "conceito", ou "autoral", como costumam apresentá-lo. O que faço é uma comida de raiz caiçara, muito, muito caseira. Muito original. Meu diferencial, sem dúvida, é o produto fresco e excelente, não importando o preço, que é justo. Caso dos peixes ordinários, ordinaires, como se diria na França, comuns, de nossa costa. E extremamente bons. Não exploro muitas técnicas, tampouco essa coisa "sensorial" que faz sucesso. É uma cozinha de refogados a minha. À base de alho e cebola na manteiga. De sabor. De simplicidade. Peixe fritinho no fubá, como minha mãe fazia, com pirão, com arroz de taioba e banana assada. Isso vai ter! Arroz lambe-lambe de marisco, prato tradicional. Azul-marinho, baita peixe emblemático da culinária caiçara. Isso define a minha cozinha. A raiz. Há uma expectativa que se cria em torno dos grandes chefs brasileiros. O que posso dizer é que a cozinha do Taioba é do jeito que eu sou.
DC - Como é trabalhar em família, com uma chef de cozinha ao lado?
EA - Ah, rolam várias tretas. Risos. Na baixa temporada a gente trabalha de quinta a domingo. É um pavor. E o restante dos dias é só de amor. Risos. Ela é uma excelente cozinheira. Além de forte e guerreira. Sei que o Taioba tem o sabor que tem porque há essa mistura de cozinha caiçara com a baianidade da Val. É ela quem segura as minhas pontas. Enquanto estou à frente dos eventos, que é o que mantém nossas contas, ela cuida da nossa vitrine, o restaurante.
DC - Você "anda sobre as águas". Quando revisita sua história, que teve uns bons percalços, punhado de milagres e, agora, coleção de discípulos, o orgulho é imenso, não é não?
EA - Sei que há uma brincadeira, um exagero seu. Uma metáfora. Risos. Sei também que Jesus sempre esteve ao meu lado. Sou de fé. O Luciano Boseggia foi o anjo que me descobriu no litoral quando eu ainda era moleque e me deu oportunidade. À época (quando Assis estudava panificação), ele era chef do grupo Fasano. E fui encontrando outros anjos, que me deram oportunidade de trabalho. Queria aprender, absorver, viajar. Tudo brilhava e ainda brilha aos meus olhos. Obviamente, houve muita dedicação da minha parte. Não foi apenas sorte. Trabalhei muito aqui e fora do país, quis sempre dar o meu melhor. É isso o que faço até hoje. Honro meus pais pela educação que tive. Tenho, hoje, 13 funcionários e espero sempre merecer tê-los como colaboradores. A minha base foi muito de minha mãe, tive uma criação muito forte. Acho que tenho só a agradecer pelo fato de ter conhecido tantos lugares do mundo, experimentado tantas coisas diferentes e me ladeado a grandes cozinheiros. Pensar que fui um caiçara matuto é ter a certeza de que a gastronomia transforma vidas. Por isso estou tão envolvido com o Projeto Buscapé.
DC - Estamos na quarta revolução industrial. No tempo da internet das coisas, da inteligência artificial e de se ponderar sobre a terceirização do gosto. Tivemos de deixar de cozinhar para nos dar conta de quão importante é saber preparar o alimento que consumimos. E, mais ainda, sobre a origem e o caminho que ele fez para chegar à mesa. Tornamos, de mansinho, a matutar sobre o aquecimento global e a falar de acordos globais, caso do Tratado de Paris, ainda que por acaso, nas mesas de bar. Essa afirmação lhe faz sentido?
EA - O impacto nem precisa ser industrial e global para que a gente o sinta e fale sobre ele. Veja. Um dia disse a um amigo para comprar o peixe de tal pescador na Barra de Boiçucanga. E ele me voltou com essa: - "Estava congelado". Ora, se não há demanda, o pescador vai conservar o pescado em gelo até que alguém o queira. Pense. Bom. Há um ditado aqui de que o pescador caiçara é desconfiado. Muitos já passaram fome porque ninguém queria o produto de que dispunham. Os anos correram. Muitos restaurantes abriram no litoral. E muitos empresários preferiam comprar peixes congelados importados, caso de um salmão chileno, a comprar o peixe fresquinho, direto da mão do pescador local. E aí você pergunta a um restaurateur ou chef de cozinha por que fazer isso. Ele vai dizer algo assim, não raro: - "Porque o meu cliente, meu público não come este peixe". Linguado, pescado, salmão. As pessoas só comem isso? Sério? Nunca vendi um robalo ou um salmão no Taioba. E nunca vai entrar. Se o pescador ainda parece ressabiado, certamente é porque ele já foi muito enganado. O saudável e local sempre esteve por aqui. Mas há quem prefira o congelado que viajou quilômetros. Ora, peixe fresco dá trabalho. O pescador não tem obrigação de filetar, limpar e escamar um peixe para o cozinheiro. Ele precisa fazer isso. O pescador não tem de lhe dar boleto. É preciso, sim, saber valorizá-lo e pagá-lo à vista. Penso que, em geral, queremos o que é mais fácil e acabamos por optar pelo que é industrial.
DC - Agora chegamos à discussão sobre a comida processada ou industrializada.
EA - Sim. Pensemos numa cantina de escola. A criançada começa lá a comer uma série de porcarias. Ao invés de ter uma saladinha de frutas, um assadinho gostoso, geralmente a gente encontra salgadinhos industrializados, frituras e alimentos prontos e não tão saudáveis afins. OK. Olho, então, para o Taioba. E, de vez em quando, dou umas cutucadas nas minhas redes sociais. Se há carapau fresco disponível na mão do pescador, por que contibuar a servir Pangasius para o cliente? Alguns pescadores já vieram me contar que, quando faço isso, às vezes há procura maior pelos pescados frescos. Tenho de aproveitar o fato de ser formador de opinião para provocar, para falar no assunto. Você, jornalista, também precisa tocar no assunto. E, assim, vamos nos lembrando do que importa: de consumir menos produtos industrializados e de estimular a cadeia local de forma sustentável. É louco pensar no trabalho árduo que isso nos dá. Tenho um filho pequeno e, mesmo ele tendo pais cozinheiros, sei que ele adora comer salgadinho de pacotinho na escola. A mídia, sobretudo a televisão, o meio em que estamos inseridos, os hábitos de quem convivemos. Tudo nos influencia. Temos de dar o exemplo ou, no mínimo, de descobrir e relevar bons exemplos.
DC - E o que acontece com o pescador desistimulado ou sem clientes em São Sebastião?
EA - Ah, muitos desistem, migram para a área náutica. Vão trabalhar com barcos de veraneio. Se pescam e não há para quem vender, muitos desistem do ofício. E, com isso, acaba a pesca bacana, aquela sustentável. Em Boiçucanga (SP), pergunte onde há um restaurante caiçara de fato. Você não vai achar. Pergunte, então, onde há um Bob's ou Subway. Haverá, claro. E isso não lhe parece um absurdo?
"Linguado, pescado, salmão. As pessoas só comem isso? Sério? Nunca vendi um robalo ou um salmão no Taioba. E nunca vai entrar. Se o pescador ainda parece ressabiado, certamente é porque ele já foi muito enganado. O saudável e local sempre esteve por aqui. Mas há quem prefira o congelado que viajou quilômetros".
DC - O azul-marinho, peixe desconhecido para muitos, como já citou, é da nossa costa. E sabemos que há muitos outros pescados que não têm, ainda, o valor que merecem. E que não são consumidos porque ninguém os apresenta ao comensal. Que peixes você recomendaria que comessemos com mais frequência?
EA - Gosto do Guia de Consumo Responsável de Pescados, organizada e divulgada pela Unimonte, universidade de Santos.
PARÊNTESES - Estudantes e professores dos cursos de Oceanografia, Ciências Biológicas e de Publicidade e Propaganda se uniram para criar esse catálogo, que traz a lista de espécies com risco de extinção e as viáveis à pesca. Ele foi publicado pela primeira vez em 2014 e pode ser baixado aqui.
EA - Eles classificaram o peixe com três bandeirinhas. Vermelha (consuma pouco ou não consuma), amarela (com moderação) e verde (à vontade). Até para esse guia há controvérsia, se considerarmos a região em que estamos no Brasil. Fato é que cada pescado tem sua época. Se está na época, há abundância. No Taioba, usamos muito sororoca, corvina, carapau, anchova... A pesca de cerco traz os peixes que estão disponíveis em cardume. Em julho, por exemplo, conto com a tainha. Quando o peixe vem até nós é porque podemos consumí-lo.
DC - Quando a gente olhava para Ferran Adrià, no começo dos anos 2000, todo aquele vanguardismo parecia futurista e resoluto. Aquilo era a gastronomia do futuro. Nitrogênio líquido e esferificação eram baitas verbetes! Tanto que você buscou estudar com o catalão, obstinadamente. Hoje, pensando bem, o que é a gastronomia do futuro, chef?
EA - A gastronomia do futuro está nas origens. Está no resgate. Voltaremos uns passos atrás para caminhar para frente. Resgatar o que se perdeu pela falta do registro, da documentação. Vamos parar de comprar açafrão de pozinho e aprender a ralar a raiz na comida. E, por que não, a fazer peixe seco no varal. Quando estava em Alphaville, prestando consultoria, antes de abrir o Taioba, uns amigos me perguntavam: - "Eudes, onde como comida típica no litoral paulista? Caiçara mesmo?". Eu ficava em silêncio porque não tinha recomendações. As técnicas ancestrais são úteis à cozinha do futuro. A panela de ferro que é usada na cocção do azul-marinho, por exemplo. É uma reação química na panela certa, a de ferro, que deixa o caldo azul, por causa da banana verde. Há uma história ali. Minha visão de culinária de futuro? Entender de processos como esse, do potencial dos ingredientes brasileiros e usar tudo o que sei para descobrir o que não sei.
DC - E o que é a cozinha caiçara, afinal?
EA - É essa cozinha de sobrevivência à beira mar. Todo prato típico caiçara é de resistência, de sobrevivência. Quando mar está muito bravo, pescador caiçara não ganha o mar, muito menos de canoa. Imagine isso. Em época de escassez, as mulheres dos pescadores colocavam mais bananas verdes na mesa para suprir a falta do peixe. Assim surgiu a receita do azul-marinho. A de lambe-lambe teve relação com a influência espanhola. Os pescadores misturavam arroz fresco com mariscos. As conchas se abriam na hora, no vapor. Aquilo sim é o sabor do mar. A mandioca e outros tubérculos também nos deram força e energia, sempre. Adoro a cozinha brasileira. O que me encanta é essa mistura de regionalidades e de técnicas diferentes de muitos imigrantes. O mais gostoso é que cada região do país tem seus ingredientes e acentos, sua particularidade. A cozinha brasileira é a melhor do mundo.
"A gastronomia do futuro está nas origens. Está no resgate".
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