"As revoluções da comida": à mesa com Rafael Tonon
"As revoluções da comida": à mesa com Rafael Tonon
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Rafael Tonon é jornalista especializado em gastronomia. Melhor dizendo, é um jornalista que escreve sobre comida. Freelancer de diversos veículos internacionais, é correspondente, no Brasil, do Eater (o maior portal de gastronomia dos Estados Unidos) e colaborador de veículos como Vice, Slate, Fine Dining Lovers, entre outros. Vive já no Porto, em Portugal. Cidade que considera como um “bairro expandido”, dada a comparação com Campinas/SP, onde nasceu, em 1982, viveu e, também, se graduou em Comunicação Social – Jornalismo, na PUC-Campinas. OUÇA E LEIA A ENTREVISTA AGORA.
"Eu gosto muito de morar aqui, gosto da ideia de ser estrangeiro numa terra que não é minha. As pessoas têm um pouco algo contra esta sensação. Eu não sei se é Portugal ou se eu tive sorte. Mas eu sou muito bem tratado. Acho que, para mim, o Porto é um bairro expandido e que eu consigo encontrar tudo o que eu preciso. Que tem uma gastronomia pulsante e cheia de coisas, enfim, para descobrir uma arte uma gastronomia cheia de tradição. Acho isso muito bonito em Portugal. Então é um prazer. Mas, assim, não vou negar que não morro de saudades”, confessa Tonon.
A conversa que tive com ele foi regada a bons goles de café, hábito assemelhado que cultivamos nas “redações” que nos competem. Diariamente, até o horário do almoço, seguimos cafeinados. Mas há outras semelhanças para além da bebida que nos desperta.
De alguma forma, representantes da mesma geração, decidimos olhar para o comer e a comida – e não somente para a gastronomia e suas “estrelas”. E isso fica claro em alguns gestos. Deste lado do Atlântico, mantenho Diálogos Comestíveis desde 2015 e me debruço pelo comer que desenhamos – as escolhas que fazemos e terminam no “prato”, falante, dialógico. Do outro lado, Tonon põe-se ao saber fazer jornalístico com a vantagem competitiva de estar no cenário Europeu. Somos da espécie Homo culinarius. É legal entrevistar quem admiramos.
Como pretexto para esta conversa via Zoom, devidamente gravada pelos tantos #MotivosParaDialogar e disponível para ser ouvida na íntegra, o lançamento da segunda obra de Tonon – “As revoluções da comida: o impacto de nossas escolhas à mesa”, da editora Todavia, disponível a partir deste 7 de maio de 2021, ano 2 da pandemia de Covid-19. O livro, aliás, foi adiado algumas vezes em função do contexto. E ganhou mais um capítulo “Rãs à quitrídio”, pela mesma razão. No final do livro de Tonon, também há uma "chuva de sapos".
Assim que tive certeza do lançamento, corri, por email, à editora para agendar a prosa com Tonon. Li a obra de 160 páginas em quatro horas, com certa “fome”. E a sensação que tive foi a mesma de quando assisti a Magnólia, de Paul Thomas Anderson (1999). O passado, afinal, nos une. Trata-se de uma "grande reportagem", classificada como “ensaio” pela editora, de fácil leitura e um tantão de referências. Não quero dar aqui spoiler algum. Para quem entende um pouquinho de história da gastronomia, um prato cheio para rever-se pontos de vista de um jeito não linear – algo de que gosto muito em toda boa narrativa. Há pontos a debater.
Às voltas com a coordenação do curso de Comunicação e Jornalismo Gastronômico no Centro Culinário Basco, que começa e outubro, Tonon disse "estar louco" para terminar de ler Torto Arado, romance de Itamar Vieira Junior também publicado pela Todavia. Nos ouvidos, tinha grudado o single Andorinhas, da cantora portuguesa Ana Moura, que acaba de ser lançado e marca “um início de carreira para além do fado”, nas palavras de Tonon. Filhos da Cidade das Andorinhas, soltamos, então, nossas asas de costa a costa nesta conversa fadada a ser boa. Leia a seguir:
Diálogos Comestíveis (DC) - Vou contar uma sensação engraçada que tive ao ler seu livro. Obviamente, uma metáfora, uma alegoria para a gente poder começar a falar. Foi algo parecido com o que tive ao assistir Magnólia. Com direito à chuva de sapos ao final. Para quem entende um pouquinho de história da gastronomia e é fã de Rebecca Spang e Bee Wilson, há conexões e turning points espaço-temporais interessantes. Gostaria que você contasse um pouco das decisões acerca da estrutura do livro e do storytelling curvado, que transita entre presente e passado, pontos de vista e história.
Rafael Tonon (RT) - Curioso, porque é meu filme preferido de sempre. Adoro o Paul Thomas Anderson, é meu diretor preferido e eu acho que é uma boa analogia porque o livro tem exatamente o que tem no filme. Foi a forma que eu me encontrei na narrativa. Gosto muito desse saltos temporais e geográficos. O livro tem muito isso. Ele salta muito no tempo, vai e volta. Ora você está numa numa tratoria em Bérgamo, algumas páginas adiante você está numa fazenda no interior de Nova York. Depois, estamos num terraço no Brooklyn, num prédio abandonado fazendo hidroponia com luz de alta tecnologia. Enfim, eu gosto muito desse saltos. É uma forma que eu encontrei de fazer a minha narrativa. Fico muito feliz analogia com Paul Thomas Anderson porque é muito lisonjeira, embora eu não mereça. Trabalho levando em conta que o ponto de vista nunca é único. Sempre é multifacetado. Então, todos os capítulos do livro têm isso de contar versões de história ou pedaços de história a partir de pontos de vista diferentes para tentar construir um todo. Para que o leitor possa terminar aquele capítulo e perceber um pouco mais do tema. Foi das coisas mais difíceis que eu já fiz em termos de trabalho, porque me custou muito conseguir pensar e amarrar essas histórias.
DC - Entendo por que quatro anos de processo de escrita. Houve um debruçar e uma cobrança muito grande de tua parte e, também, um trabalho da Todavia importante, não é? Foi um trabalho a oito mãos!
RT – Escrever um livro e uma reportagem também é editar. Você põe (o texto) para fora, depois corta. O trabalho de editar é tão parte do todo quanto escrever. Um texto sem edição não é um texto pronto para vir ao mundo. A gente precisa dormir com o nosso texto, voltar a ele e pentear cada palavra. E, no português, a gente tem um vocabulário muito mais amplo que em outras línguas. Encontrar a palavra certa talvez seja ainda mais difícil. Encontrar aquela "naquele sentido" é o que muda o todo. E tem ainda o papel da edição de um terceiro, né. No caso da Todavia, tive um editor, um preparador de texto e um revisor. E a alegria de poder trabalhar com Leandro Sarmatz, que foi meu editor na Editora Abril. E é maravilhoso. Ele é como um cirurgião plástico bem-sucedido, aquele que faz um corte muito pequeno e preciso e muda a linha de tudo.
Rafael Tonon: "Eu não sou um jornalista gastronômico, eu sou um jornalista de comida".
DC - A ousadia de falar de Donald Trump pela borda inicial é outra metáfora alegórica para o comer destrambelhado de antes e de agora. Faz tempo que está chovendo hambúrguer, precisamente desde os anos 1930, advento do fast food, abordado no primeiro capítulo. Em que momento de escrita a pandemia de Covid-19 o pegou de sopetão e o fez pensar sobre as consequências das escolhas equivocadas do comer - e, assim, convidar leitor a engolir (e digerir) alguns sapos?
RT - Gostei de ter começado essa versão do fast food, porque eu acho que foi uma coisa muito importante para a nossa sociedade, como um marco da forma que a gente comia. E come. De como isso representou algo novo para a nossa alimentação. De uma maneira geral, a cobertura gastronômica, especialmente no Brasil, e em alguns países, costuma ignorar a ideia de fast food. Não se pode falar disso num caderno de gastronomia "sério". No Brasil, é uma coisa que ainda falta se desenvolver. Não olhar para a gastronomia só como uma coisa de restaurante de alta gastronomia e de chefs. A alimentação perpassa muito mais coisa do que essa bolha gastronômica que a gente criou. Foi uma analogia interessante. Eu quis começar com algo que todo mundo come e, a partir disso, tratar do comer mecanizado, do comer rápido e do comer lento (Slow Food). Enfim, tal como a indústria de alimentos representou um novo paradigma para a forma se comia em casa, o fast food apresentou um novo paradigma sobre o comer fora de casa. Também porque a ideia inicial do livro era fazer uma coisa muito diferente, muito de fast food. Eu assinei o contrato num ano que o Big Mac completou 50 anos. Depois, o livro tomou outras formas, levou mais tempo e ganhou uma espécie de posfácio. Também quis esperar para ver se o que eu havia escrito faria sentido. A gente estava no meio de uma pandemia, eu não sabia muito como que as coisas seriam. Quer dizer. Eu acho que a gente ainda não sabe, né! A gente ainda não tem essa certeza. Mais que isso, ter um respiro e poder olhar para trás para perceber se vai fazer sentido. Acho que fez. Não fiz um juízo de valor. Claro que tem um pouco da minha visão. Mas, quem me conhece bem percebe ali uma alfinetada ou outra, mas muito sutil. Eu não tinha a ideia de fazer um ensaio. Também não tinha ideia de fazer uma coisa muito dissertativa ou opinativa. Era uma grande reportagem sem ser tão new journalism. Vejo o livro como uma montanha russa. A paisagem muda, o ritmo muda. Queria que as pessoas chegassem felizes e excitadas no final.
DC – Aquela sensação orgasmática. Que tanto o prazer hedonista causa no comensal quanto o prazer do alimento fundamental, que é o conhecimento, traz ao leitor? Pois vamos falar dos entrevistados e referências. Dan Barber, Carlo Petrini, Andoni Aduriz são personalidades ladeadas em seu livro. Ele não fala de estrelas, mas de expoentes, de notáveis. Daria para incluir René Redzépi e Daniel Humm nessa história? Dizer de processos de fermentação e desenvolvimento de alimentos e menus baseados em plantas, nova onda de cozinheiros? Ou, melhorando a pergunta, o gesto recente de Humm, em seu Eleven Madison Park, para os vegetais, é determinante de um novo gesto gastronômico?
RT - Acho que o que o livro tenta trazer, principalmente, revolucionários. Em “Revoluções da Comida”, falo de pessoas que revolucionaram a forma de a gente escolher ou entender a comida. Por exemplo, o trabalho que Dan Barber fez e faz sobre a ideia de ter uma comida que é “daquele lugar”, que tem uma proximidade quase visceral com o restaurante (Blue Hill, nos EUA). Ele estende a mão da cozinha e tira uma cenoura da terra. Isso mudou a percepção que a gente tinha, principalmente a partir de uma construção de "ideia de gastronomia" que surgiu, primeiro, de “comida próxima”; depois, de uma “comida globalizada”, a partir das grandes navegações. A primeira globalização da comida, como sabemos. Depois a gente aprendeu que podia comer o que quisesse de qualquer país do mundo. Adiante, que isso poderia chegar para mim. Veja, as importações começaram nos anos 1990, no Brasil. A gente começou a tomar vinhos e ter acesso a produtos de vários países. Isso tudo foi bom, mas nos fez esquecer um pouco do valor que tem essa questão dessa relação mais próxima com a terra. Então, Dan Barber veio para mostrar isso. Acho que o restaurante que ele construiu é muito emblemático dessa mudança de olhar na gastronomia. Do Andoni, quis mostrar o restaurante como uma outra experiência de comunhão e de congregação. Acho o capítulo (Mamilo de Ostras) muito bonito. Quando ele conta aquela história deles falando da música compartilhada no ambiente (por meio de um prato de comida). O Mugaritz é um restaurante que já tem mais de 20 anos no mercado e que vai tentar transformar conceitos ainda mais depois desta pandemia. Agora, no sentido, por exemplo, da fermentação ou de algumas coisas que acontecem dentro da alta gastronomia, acho que muitas das tendências surgiram a partir desses chefes ou esses chefes se tornam vozes muito importantes dessas mudanças. Talvez eu precise esperar um tempo para ver como isso vai ficar. No caso de Dan Barber, é elucidativa a ideia de olhar para o campo e produzir coisas melhores. Hoje, a gente tem produção no Brasil de azeite, vinho, cerveja (por cozinheiros). Coisas que a gente não tinha há dez anos, há cinco anos. Ele ajudou. Barber não mudou sozinho, obviamente, mas ele também ajudou a criar nas pessoas (especialmente nos chefs) uma visão de que precisamos cuidar dos nossos produtos a partir de terra. Ou de que um restaurante que não é nada sem um bom produto. Então essa filosofia permeia muito mais a sociedade. O livro quis trazer pessoas que fizeram mudanças. Que não afetaram só os valores e a bolha deles, mas a forma com que a gente se alimenta. Agora, no caso do Daniel Humm, que anunciou que o restaurante dele será totalmente sem carne, acho que isso tem um papel muito importante porque é um chefe se posicionando politicamente. Essa é uma questão de mudança de paradigma da alimentação. Agora, se o que ele fez vai ter impacto, preciso esperar mais uns anos para conversar sobre.
DC – “A ruptura total não é boa para criar momentos inesquecíveis”, lhe disse Aduriz. Algo registrado no capítulo “Mamilo de ostras”. Concordo com ele. E, também concordo, como aponto em minha dissertação de mestrado (2020), que gosto, emoção e memória estão presentes na linguagem do processo criativo de chefs de alta gastronomia, como você assinala no livro a partir da ilustração do trabalho de Aduriz e do ceifar que ele fez sobre o relato dos comensais que frequentam o Mugaritz acerca do “gosto”. Vamos falar de Aduriz e também do Big Data, das inteligências artificiais e do “Desalgortítimo”, novo menu de temporada do chef? Veja. DES é prefixo para ação contrária, algo que, ao que tudo indica, “Desalgorítimo” propõe: surpresa, quebra de padrões e liberdade de escolha. Mas DES também é criptografar com chaves simétricas de 64 bits. DES, nesse caso, Data Encryption Standard, conceito engendrado nos anos 1970. Engraçado pensar o quão difícil, no contexto de hoje, é surpreender e escolher em meio a tanta informação disponível, não é mesmo? Queria que você dissesse um pouco da relação dos cozinheiros e dos jornalistas com a tecnologia e de quão responsáveis ambos somos pelo comer do futuro, pelas "experiências" com a alimentação.
RT – Quando contamos da experiência no Mugaritz, como seres humanos sociais, conceito que o também explica, acho que tudo é uma desculpa para a gente sentar junto e comer junto. Toda a parafernália que vier resvala(rá) nesse mesmo objetivo, o comer junto. O livro também tem a questão dos mug bankers (#mukbang, que a jornalista Bee Wilson, pesquisadora alimentar e autora de inúmeros livros sobre a nossa relação com a comida aborda em seu The Way We Eat Now), que comem na frente da tela de computador. O que essas pessoas querem, na verdade, é conexão. Para quem não sabe bem o que é, trata-se de uma prática em que as pessoas comem na frente da tela com microfones de alta de alta capacidade de captação. Comem na frente da tela para as pessoas assistirem. No Mugaritz, o que querem as pessoas ao tocarem uma música juntos com seus pratos se não conexão? O que queriam as pessoas que iam aos restaurantes quando eles ainda serviam apenas caldos restauradores? Se não uma forma de buscar um alimento para o corpo e, também uma forma de conexão social? Nos piqueniques, nos drive-ins? Comida é sobretudo de comunhão, conexão. E qualquer coisa que a criar é pela necessidade de se conectar.
DC - Fomos do caldo à recompensa, da restauração à ostentação, como você diz no livro. Mas ainda estamos conectados ou buscamos a conexão. Seria isso?
RT – Eu me emociono todas as vezes que eu falo isso. Para mim é um restaurante é isso. Sabe, eu fui ao cinema agora que reabriram, aqui em Portugal. Eu tenho assistido ótimos filmes em casa, mas eu não tenho ali a conexão do cinema. Eu não estou ali numa experiência. Que é o que eu acho que é algo bonito que é estar numa experiência privada, só minha, individualizada dentro de um coletivo. Isso é um restaurante né. Estou ali, no meu universo, na minha mesa, com minha esposa, comendo, conversando sobre assuntos que são só nossos, mas compartilhando esse espaço-tempo com outras pessoas sabe. Faço essa analogia no livro.
DC – Vamos falar do jornalismo que trata de alimentação? Ou do jornalismo gastronômico? A coordenação do curso de Comunicação e Jornalismo Gastronômico no Centro Culinário Basco é desafiadora em muitos sentidos, creio. No nosso contexto, somos todos foodies, mas alguns de nós se propuseram a fazer uma transição de compreensão acerca do que é escrever sobre a comida. E, afinal, o que é ser jornalista de gastronomia ou jornalista de comida, hoje? Importante destacar que o contexto europeu e contexto brasileiro de produção noticiosa são muito distintos. E que, certamente, você tem esta clareza sobre o fazer jornalístico ali e acolá. E que almeja exercer sua profissão com responsabilidade.
RT - Acho que, na língua portuguesa, nos falta uma palavra tão boa quanto food. Food journalism, food media. Food compreende tudo. Eu não sou um jornalista gastronômico, eu sou um jornalista de comida. É uma coisa eu não não se consolidou a dizer, mas essa seria a definição se eu pudesse me dar. Eu escrevo sobre comida, sobre alimentos, sobre tendências de comportamento ligadas à comida. Eu escrevo sobre comida ativamente. Também acho que, às vezes, escrevo sobre coisas em que comida é só um pretexto. Então eu diria que eu sou um jornalista de comida. Estamos evoluindo como jornalismo para perceber que esse papel jornalístico dessa cobertura que temos de fazer é mais amplo. Ou deveria ser muito mais amplo. O jornalismo gastronômico, nos últimos anos, ficou muito voltado ao “chef”. O livro é um pouco uma resposta a isso, porque falo com os cientistas, com pesquisadores, com chefs, com cozinheiros e com produtores. A gente tem o fazendeiro que foi para o interior para cultivar seus alimentos e dar para as pessoas a chance de terem uma boa conexão com a terra. A gente tem os irmãos espanhóis Gonzálo e Gabriel Úrculo que repensaram a vida a partir das laranjas da família. Enfim, o livro é muito de como eu vejo e como eu acredito nesse jornalismo. Hoje, estou coordenando um mestrado de jornalismo gastronômico no Basque Culinary Center e, nesse curso, coloquei muito do que eu queria dos jornalistas do futuro. Os jornalistas que vão ver a gastronomia nessa perspectiva mais ampla, não só do chefe de cozinha, da estrela. O jornalismo precisa falar dos restaurantes porque os restaurantes são muito importantes, obviamente. Mas, quando falamos num restaurante, não falamos só do chef. Ao mesmo tempo, acho que a gente precisa sair do restaurante para falar do restaurante. A gente também precisa ir ao produtor. Que é o fornecedor do restaurante e do cliente que consome aquela comida no restaurante. Eu tenho a sorte de poder escapar para temas muito diversos. Como uma reportagem de capa que fiz em Portugal sobre hortas urbanas. Como as pessoas estão tendo uma nova relação com a sua própria comida.
DC - Ser jornalista no Brasil é um pouco diferente. Entre Europa e Brasil há mesmo um oceano de diferença.
RT - Acho mesmo que a gente tem uma percepção muito diferente de jornalismo (na Europa). Sou um jornalista brasileiro que trabalha para veículos do mundo. Primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa. E isso me deu uma visão de jornalismo muito diferente da que eu tinha no Brasil. Trabalhei para muitos veículos no Brasil, para os grandes jornais e seus cadernos de gastronomia. Mas, acho que o jornalismo que a gente faz no Brasil ainda é muito reduzido e redutivo. Acho que a cobertura de gastronomia, de uma maneira geral, precisa evoluir. Já está evoluindo. Mas, quando saí do Brasil, na verdade quando eu comecei a escrever para outros veículos ainda no Brasil, percebi isso. No Eater, que é um portal com o qual colaboro muito, por exemplo. Sempre que o McDonald's lança alguma coisa isso é notícia lá. Porque tem a ver com o que as pessoas comem. Eu nunca poderia ter um espaço para falar sobre isso, sobre fast food, num jornal brasileiro. Tudo era muito pautado pelo que os chefs estavam fazendo, por essa ideia que se tem de alta gastronomia. Depois, eu vim para a Europa e, em Portugal, por exemplo, as duas maiores revistas semanais falam de comida. Eu consegui escrever uma matéria para a Época, no Brasil, depois suar para conseguir. No Brasil, ainda, as pessoas acham que a cobertura de comida é uma coisa menor, supérflua, de pouca importância. Eu acho que não, tanto que lutei para conseguir escrever o primeiro livro de comida da Todavia. Mas é uma editora que tem uma cabeça mais aberta. Todas as editoras fazem muitos cook books, que são livros de receita. Não parece que a gente pode gerar esse tipo de conteúdo, sabe. Enfim, eu acho que há um paradigma que a gente vai precisar vencer no jornalismo brasileiro e creio que a gente tem muito espaço para crescer. No momento que a gastronomia passa pela melhor fase, os veículos estão diminuindo a cobertura de comida. Como assim? Como isso acontece?
DC - No nosso contexto, há tantas pautas relacionadas agronegócio, à comida como commodity, não ao alimento em todos os seus sentidos. Ser jornalista no Brasil é um pouco mais difícil.
RT - Especialmente agora. Passamos por tantas provações no sentido do que é fake news, do que é notícia de verdade. Acho que é um momento especialmente difícil para ser jornalista. No Brasil, talvez mais. Mas, o que eu acho, também, é que estes veículos acabam por perder espaço, numa visão muito humilde, porque pararam de enxergar o leitor. Principalmente nessa área nessa cobertura de gastronomia, sabe. Vou falar de restaurante que está criando um menu sobre biomas, pode decidir o veículo. O brasileiro médio tem interesse em saber disso? Não acho que não seja importante esse tipo de pauta. A gente tem cineastas sul coreanos que têm um conteúdo super hermético. Que não têm uma crítica cinematográfica sobre o trabalho deles. A mesma coisa acontece na gastronomia. Mas, ao mesmo tempo em que falo do diretor de arte na crítica cinematográfica, também falo de um blockbuster da Marvel. Porque isso também é importante. Agora, na gastronomia, a gente não olha para os "blockbusters"? A gente só olha para o mundo dos autores, dos grandes diretores, dos intelectuais ou dos grandes chefs que são os intelectuais? Isso nos desconectou com o público que poderia ser um público leitor desses veículos, sabe. É isso que eu quero que o livro seja. Acessível a todos, não somente aos foodies, aos especialistas em gastronomia. É para todo mundo que gosta de saber de comida e gosta de comer.
FAST FOOD, FAST NEWS, SLOW NEWS, SLOW FOOD, SABEMOS: ESTÁ TUDO CONECTADO.
DC – Há uma expressão sobre a qual insisto há ao menos três anos: “todo comer somos nós quem desenhamos”. Que remonta ao design, ao food design. Pois, se pensarmos bem, embora as informações estejam disponíveis, as escolhas não são exatamente nossas. São obtusas. Ao mesmo tempo, todas as escolhas são absolutamente nossas. Somos capazes de redesenhar paisagens. Somos capazes de ler o que dizem os nossos pratos falantes. E, neste sentido, volto a ponderar sobre o tamanho da responsabilidade que tem um jornalista quando escreve sobre o que quer que seja.
RT - Exatamente. A gente pode pensar na nossa comida como um grão de arroz para mudar isso. Mas, que é muito muito simbólico e muito importante no sentido do que a gente quer construir. Há um discurso romantizado acerca da relação com o pequeno produtor. Mas, também, no nível prático, pragmático, que faz toda a diferença. Sabemos muito pouco sobre o alimento que comemos e tanto sobre a roupa que vestimos. Isso é sintomático. Quando compro a comida de alguém que conheço, isso faz sentido. O último capítulo do livro é uma reflexão sobre isso. O que a gente come muda muitas coisas, tem um impacto muito grande. Quando em um aplicativo escolho que quero tal comida e estou disposto a pagar tantos reais para comer isso,estou ajudando a fomentar esse sistema para o bem e para o mal. De novo, não estou julgando as pessoas. Peço comida bebidas, não tem problema nenhum. Eu acho que só temos que ter consciência dessas decisões. Apertar um botão é fácil, mas saber que impactos que esse botão causará na sociedade, o que precisamos saber e o que precisamos buscar saber mais. Não dá mais para alegar ignorância, sabe.
Nesta entrevista, Tonon falou, ainda, sobre os planos para dali a pouco, sobre o livro sobre o porco que lançará, se tudo correr bem, em 2022 e sobre outros desafios. Dá para ouvir tudinho neste link. Então, aproveite.
Em cerca de uma hora e 15 minutos de conversa mediada pela tecnologia, o tempo passou voando. Dividimos o mesmo espaço-tempo e, naqueles instantes, dividimos este ponto de vista: o “alimento”, esse objeto tão paradoxal, pode nos fazer mudar mundos. A fome, também. Faça suas escolhas. Sim, que venha a próxima refeição. E todos os debates acerca. E todas as revoluções da comida.
{module [160]}