Skip to main content

A Gastrotinga de Timóteo Domingos

A Gastrotinga de Timóteo Domingos

| Marcas falantes

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.


Timóteo Domingos é um cabra arretado. Soube do Gastrotinga, projeto que encampou há pouco mais de dois anos, ao ver esse cozinheiro alagoano, radicado em Canindé do São Francisco (Sergipe), carregando a jornalista Neide Duarte no lombo. O flagra da exaustão amainada pela amizade foi feito durante as gravações do Globo Repórter Especial Caatinga (o programa deve ir ao ar em breve), em maio; e publicado no perfil de Domingos no Facebook. Já "seguia" o caboclo há um certo tempo. Mas, bastou esse fio de meada para que falássemos da rudeza da fome, das palmas do sertão que saciam o gado (mas dariam conta de alimentar um país), da produção descontrolada de "comida", do consumo inconsequente e da lição de sustentabilidade desse cozinheiro. Muitos #MotivosParaDialogarwink

Cactáceas da caatinga estão na base da cozinha de Timóteo Domingos, de Sergipe. Fotos: arquivo pessoal/ divulgação
Cactáceas da caatinga estão na base da cozinha de Timóteo Domingos, de Sergipe. Fotos: arquivo pessoal/ divulgação


Nos trombamos, aliás, numa transmissão ao-vivo, num dos intervalos das gravações da reportagem do Globo Repórter. Era o domingo de Domingos. Achei pena, porém, haver pouca gente (cerca de 20 pessoas) conectada, em tempo real, à oportunidade de falar com duas sumidades, uma do jornalismo e outra da gastronomia (ainda que quase imberbe).

Domingos... É bom que se diga, tem apenas 20 anos. Cozinha desde os seis, por influência da avó. É estudante de gastronomia e ouví-lo contar de como se relaciona com o sertão é desassorear a alma. Foi a primeira figura gastronômica brasileira a conduzir uma tocha olímplica (2016). Assista ao vídeo produzido pela Nissan, sobre a história de Timóteo, aqui:

Ela é tão boa que figura em "Eu amo comida – 50 Histórias de Brasileiros que Amam Saborear a Vida", lançado pela editora MOL (2016).

Não. Não comi ainda a boia de Domingos. Ouvi e ouço falar. E quero muito explorar a caatinga a caráter e sem frescura. Será em breve. Contudo, embora não conheça os sabores criados por ele, saberes me apetecem. Daí haver preparado esse post. Sem eufemismo? Foi encorajador contar essa história. Saber que há um locavore tão jovem em solo pátrio. E tão disposto a divulgar a comida "de verdade" de um paraíso esquecido. yes

Bom. Domingos, há três anos, fez bonito na programação do 17º Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes, em Minas Gerais, ao divulgar o potencial de "plantas nativas do sertão como palmas, xique-xique, cactos, facheiros e outras, que antes só serviam para a alimentação do gado". Valendo-se das PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e de outros produtos do bioma que frequenta, criou uma espécie de cordel comestível para si e dividiu essas e outras descobertas em porções.

A que ele me serviu, entre bytes, foi essa.

 

O CHEF DO SERTÃO


Quando Timóteo, filho de agricultores, passou a criar receitas tão improváveis (para nós) como a de brigadeiro de casca de melancia, coxinha de cacto ou pudim de umbu? Aos nove anos. Ia rabiscando as ideias em cadernos depois de observar a avó cozinhar sarapatel, buchada e outras receitas tradicionais. E vendia cocada na escola, para adoçar o bolso.


"O lucro eu usava para cozinhar em casa, sozinho, num fogão à lenha e sob o teto de taipa. Um certo dia, sem coco suficiente, pensei em usar o xique-xique no lugar do coco. A receita ficou mais molhadinha, achei que as pessoas não iam gostar". A aceitação da "cocactus" foi tão boa que a cocada convencional perdeu lugar. "Não tinha avisado a ninguém e as pessoas só ficaram sabendo que usava xique-xique em 2014, quando fui ao programa da Ana Maria Braga (Rede Globo)" - Clique aqui para assistir.

Aos 20 anos ele já criou mais de mil receitas, parte delas exclusivamente com insumos da caatinga, outra com produtos de distintas regiões e capazes de "dialogar": há "discursos" Caatinga-Litoral, Sertão-Amazônia, enfim. "A caatinga não é mais pobre que a Amazônia, a Mata Atlântica ou o Cerrado. A diferença é que, até hoje, ninguém olhou para ela porque não é uma potência econômica", observa.

Domingos não recorreu a ajuda de chef famoso algum por uma razão bastante simples. Quer mostrar, pelas veredas da caatinga (por outros caminhos) quem são os verdadeiros atores da gastronomia. "Essas pessoas (do sertão) serão protagonistas da mudança que queremos propiciar. Temos que mostrar a potência econômica da caatinga trabalhando de forma sustentável. Desde o plantio à finalização do prato. Para que haja retorno efetivo para os agricultores que dependem desse proceso", defende, precoce.

Ele conta que peleja por isso desde os 12 anos. "Em uma tarefa (cerca de 3,5 mil m²) ou meia tarefa de terra, eles cultivam e preservam espécies crendo que farão diferença no futuro da alimentação", sustenta Domingos. Arrancar sonhos pela raíz não seria mesmo bom negócio.

Picolé de Palma - todo mato que é comestível interessa ao cozinheiro.
Picolé de Palma - todo mato que é comestível interessa ao cozinheiro.


Domingos é palestrante desde os 16 anos. Do Nordeste ao Sul, de Oeste a Leste, conta que a "diferença do doido para o visionário" é a credibilidade ganha ao mostrar-se o potencial da loucura. A fala também já impactou diversos telespectadores Brasil adentro - o cozinheiro assinala mais de uma centena de participações em programas de televisão e adora dizer do potencial de tudo que é comestível - inclusive aquilo que entendemos, erroneamente, por "mato", pelo excesso de oportunidade e incompreensão do sentido real da frase "você é o que você come".

Tem gente que se alimenta de raspas e restos. E, sabemos. Não é por opção. A dignidade muda quando os direitos humanos são respeitados? Ou quando compreendemos que somos iguais e deveríamos ter as mesmas oportunidades? Em breve publico post aqui sobre a pensata que tive sobre o comer com a antropóloga e cientista social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Lis Furlani Blanco, no Bar Lado B, dias atrás, durante o Pint of Sciencelaugh

 

GASTROTINGA

Avante, Timóteo! O Gastrotinga é um movimento. Leva em conta o amálgama de raízes culturais. Ritmos como o forró pé-de-serra, o xaxado, o baião. O rico artesanato. A poesia. Os distintos sotaques do comer. A biodiversidade. "É uma nova ideologia que pretende mostrar o bioma caatinga como base alimentar. Temos todos os recursos para isso. Basta saber como utilizar cada espécie da fauna e da flora de forma sustentável e equilibrada. Tinha 15 anos quando criei a base ideológica desse projeto. A parceria com o chef Rivandro França (do Restaurante Cozinhando Escondidinho, em Recife, Pernambuco), assinala o início de uma nova etapa", adianta Domingos, que chefia o restaurante Gastrotinga, desde janeiro.

O duo trabalha em prol da mesma toada há quase dois anos. Em parceria com os agricultores da cena sergipana-alagoana, viveiros de cactos foram cultivamos nas cidades de Nossa Senhora da Glória (SE), Gararu (SE), Canindé (SE), Canapi (AL), Maravilha (AL) e mais. "Há, ainda, hortas educativas em escolas e em universidades. E, com a ajuda do Palmas para o Sertão, projeto do França, passamos a ativar outros chefs de cozinha brasileiros a fim de apresentar novos ingredientes e introduzí-los no receituário dos restaurantes", destaca Domingos.

Uma vez por mês, a dupla se encontra para alinhar as ideias, pelo menos. "Sergipe foi o primeiro Estado brasileiro a cultivar cactáceas, como a palma, para a alimentação humana. Era, antes, alimentação do gado e só. Um subproduto. Em Maravilha (AL) está a primeira reserva da caatinga que conseguimos implementar, estamos, agora, restaurando a plantação nativa".

França já foi apontado por diversos chefs de cozinha, Alex Atala entre eles, com um dos mais promissores da nova geração de cozinheiros brasileiros. O cuscuz nordestino com ovo é definido assim por França e, com graça, é comida cotidiana: "pão de milho, amarelinho, Ouro do Brasil é o cuscuz. Zoiudo, bife do oião, galeto sem osso - ele é o ovo. Um casal que mata a fome, alimenta a alma e da sustância, faz parte da Cultura do nordestino". Já a palma, o xique-xique, o fruto do facheiro e a flor da palma ele faz mesmo é questão de que se encontrem com o queijo coalho, com o torresmo com a pele da tilápia, com o feijão verde frito e o mel picante. surprise

Esses ingredientes, que compõem um dos pratos autorais de França, são apontados por Domingos como algumas das muitas possibilidades de produtos comerciais potenciais do bioma caatinga. "São alternativas ao feijão e ao milho que o agricultor está acostumado a plantar e dos quais depende para viver. Eles podem gerar renda, desde que haja uso sustentável. Queremos criar um novo mercado consumidor", situa o cozinheiro.

 

Timóteo Domingos (à esquerda), Neide Duarte (centro) e Rivandro França: a caatinga que os brasileiros não conhecem ainda, virou tema do Globo Repórter.
Timóteo Domingos (à esquerda), Neide Duarte (centro) e Rivandro França: a caatinga que os brasileiros não conhecem ainda, virou tema do Globo Repórter.

 

GLOBO REPÓRTER

O que come, como vive e onde repousa os olhos o sertanejo da caatinga? Se a chamada para o programa será essa, veremos. Esqueça a referência vã que colecionoou até aqui, contudo. O que a repórter Neide Duarte conheceu, adiantamos, em parte.

Domingos considera o encontro a realização de um sonho. Revela que as gravações começaram em Araru (SE), na comunidade São Mateus, numa trilha, no meio da caatinga. "A Neide, que é uma simpatia, pode conhecer as espécies nativas, foi sensacional. O espectador deve esperar por um passeio pela caatinga de uma forma nunca vista antes. Aquele bioma seco, onde só há pobreza, chão rachado e cabeça de boi? Esqueça. Mostramos a riqueza onde ninguém via nada. E é assim. A caatinga mostra a abundância em cada lajeiro (rochas). Cada centímetro percorrido pela equipe foi um mundo novo". 

Timóteo Domingos:
Timóteo Domingos: "A caatinga mostra a abundância em cada lajeiro (rochas). Cada centímetro percorrido pela equipe do Globo Repórter foi um mundo novo"


Depois de Araru, a equipe passou por Glória, Canindé, Poço Redondo (todas cidades sergipanas); Piranhas, Maravilhas e Recife (pernambucanas). Os brasileiros não conhecem esse Brasil. Ela andou na minha cacunda (corcunda) quando mostrei a caatinga como é. Desceu uma serra e, quando estávamos voltando, exausta, tive de carregá-la. E foi tudo bem. E conheceu os viveiros, degustou várias receitas típicas e viu a aplicação das cactáceas sergipanas nos restaurantes pernambucanos", lembra.

 

NA REDE

A partir deste mês, Domingos estreia seu canal no YouTube, com transmissões ao-vivo do sertão sergipano e passa a publicar receitas e histórias em um blog dedicado ao Gastrotinga. No início de julho, o cozinheiro lança seu primeiro livro.

 

DAVI DA CAATINGA

Há pouco, aliás, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a saída desse, que é um dos maiores poluidores mundiais ao lado da China e do Brasil, do Acordo de Paris (2015). Tem gente que acha essa história de aquecimento global uma grande bobagem mesmo... 

Domingos é um Davi perto de gente Golias como Trump. Bom saber o final da parábola, só para ganhar coragem. Reforço? Atala. Também em maio, o chef esteve no escritório da FAO no Brasil em reunião com o representante Alan Bojanic. Defendeu, na ocasião: - "Precisamos promover uma campanha de conscientização para que todos voltem a se reconectar com os alimentos". 

A FAO concordou: - "Precisamos para o futuro garantir acesso a alimentos frescos e in natura com a meta de que as populações possam se alimentar de forma mais saudável. O grande desafio para a segurança alimentar nos próximos anos não é apenas fazer com os alimentos cheguem a todos, mas sim que contribuíam para uma alimentação nutritiva e saudável. A aproximação da FAO com chefes de cozinha e de outros atores desse segmento é bastante produtiva para reunir esforços e conseguir alcançar essa meta”, disse Bojanic. Leia o conteúdo na íntegra clicando aqui.

 


"Certa vez, me falaram que comer palma é coisa de miserável... Penso eu que miseravel é aquele que não sabe se reinventar diante das dificuldades criando novas possibilidades".
Timóteo Domingos, idealizador do projeto Gastrotinga.

 

E você? O que faria pela cozinha do Brasil? 

 

{module [160]}