Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Alexandre Silva tem em si todos os sonhos do mundo. É cozinheiro ou quase poeta, como o patrício Fernando Pessoa. Desde dezembro de 2015, aposta em ingredientes locais e na estreita relação com o produtor em seu LOCO, que funciona na Rua dos Navegantes, na zona da Estrela, em Lisboa. LOCO porque remete a lugar, ao que é local, sazonal, ao movimento locavore. A conceitos como o do Slow Food. À cozinha criativa embalada pelo que a natureza entrega à sazão. "Porque só assim faz sentido ser cozinheiro", exclama o chef em entrevista a Diálogos Comestíveis sobre sustentabilidade e "comida boa". Post checado em 02 de março de 2021.
Não o conheci pessoalmente. Ainda. Mas tinha muitos #MotivosParaDialogar com ele. Silva, diga-se de passagem, tem uma estrela Michelin - premiações são reconhecimentos, bacana, ok. E em frente. Porque definir "alta" gastronomia (comida boa, com sabores e saberes, sustentável) é mais bem mais complexo, ético e cultural que meramente étimo-etimológico. Prova disso? Veja os comentários (e/ou comente, se quiser) à pergunta que fiz em meu perfil pessoal do Facebook e que renderá novo post.
Fiquei interessada no trabalho que Silva vem executando nos últimos três anos depois de assistir, online, a uma palestra que ele proferira em 2014, para o TEDxIST (mais de 6,6 milhões de pessoas já a viram, via YouTube. À época, mapeava iniciativas sustentáveis de novos chefs europeus em função de uma reportagem que faria, adiante, sobre a utilização das PANC, no Brasil. Revi um tantão de relações possíveis entre os verbetes consumo e ingrediente. Também descobri que Silva era, até ali, o chef executivo do restaurante Bica do Sapato, ganhara diversos prêmios, já havia participado e vencido um reality show culinário (Top Chef, da RTP1, 2012) e, obviamente, pensava fora da caixa (ou jogava seus pensamentos inquietos dentro daquelas das quais dispunha).
Naquela palestra, ele dissera da proximidade urgente com os produtores, na relação honesta e respeitosa com a natureza e as gerações futuras; justa com produtores, cozinheiros e consumidores. Na exploração da técnica mais servil ao cozinheiro (o ingrediente como estrela). Na recompreensão da cadeia produtiva. Esses assuntos provocam sinapses atrás de sinapses. Pensar sobre o comer é revolucionário.
Fato é que o LOCO, que acaba de revigorar seu menu, tem seu manifesto. Nele fica claro que o sabor deve ser o epicentro do trabalho, que a técnica deve ser adequada à potencialização do ingrediente, que a sustentabilidade é "chave", que ideias compartilhadas globalmente rendem frutos mais gostosos, que a vanguarda e a contemporaneidade devem dialogar.
O restaurante, revela Silva, funciona num espaço pequenino - tem mais cozinha que salão na proporção dos metros quadrados (e "cê é loco", diria, de novo, ao chef), uma oliveira centenária preservada no coração do imóvel, um lado negro e um lado branco (design e semiótica), 22 assentos, duas opções de menu degustação (de 14 a mais de 18 tempos, velho formato que "entrega" o que se passa na cabeça do chef). A equipe é jovem e vive no encalço tanto de forragear (ceifar do entorno o que há de mais fresco, saboroso e original) quanto de revelar Portugal de maneira contemporânea/ criativa e atada à ancestralidade. Tem dado certo.
Formado em Cozinha/Pastelaria e em Gestão de F&B na EHT de Lisboa e em Gastronomia Molecular no Instituto Superior de Agronomia, ele costuma ser apontado pela ousadia. Foi no projeto Bocca (2007-2012) que Silva começou a mostrar a que veio. Fundou o Projecto 4th Floor - Cozinha Experimental, uma plataforma à procura de respostas sobre o respeito à gastronomia portuguesa, aos produtores, aos produtos, às técnicas e à criatividade. No Alentejo, ele chef executivo do Alentejo Marmóris Hotel & Spa e, então, teve a chance de se aproximar de agricultores e de explorar novos produtos, endêmicos. Depois de passar pelo Bica do Sapato, abriu seu primeiro restaurante, no Mercado da Ribeira. Em seguida, o LOCO.
"Quanto mais locais conseguirmos ser, mais globais nos tornaremos" ,
Alexandre Silva, chef e proprietário do restaurante LOCO
DIÁLOGOS COMESTÍVEIS (DC) - Os princípios do Slow Food (e da nova gastronomia) correm em suas veias. Por que decidiu focar seu trabalho sob essa ótica?
ALEXANDRE SILVA (AS) - Porque só assim faz sentido ser cozinheiro! Os cozinheiros, para além de saberem ser e saberem fazer, têm de saber estar. Temos uma grande responsabilidade social. Não basta dizer que nos preocupamos, temos realmente que nos preocupar com aquilo que nos rodeia. Temos de trabalhar localmente, ajudar a construir uma pequena economia gastronômica. E isso vai desde o vendedor de sementes ao produtor, ao distribuidor. Todos têm um papel importante nesta nova era. Quanto mais locais conseguirmos ser, mais globais nos tornaremos.
DC - Para sermos sustentáveis, temos de ser bons, limpos e justos, como deve ser o alimento que consumimos. E, tal acontece numa engrenagem de relógio, se uma dessas "peças" faltar/ falhar, jamais seremos sustentáveis plenamente. Essa ponderação lhe faz sentido?
AS - Muitas empresas de restauração, hipermercados etc fazem negócio à custa do esforço de outros. A justiça é algo que me preocupa. Um produto deve ser pago ao preço justo. Não passa pela cabeça da maioria das pessoas o esforço financeiro e físico que os pequenos produtores sofrem. Ninguém quer saber disso. Basta aparecer nas mesas algo para comerem e isso já é suficiente. Não podemos fugir das nossas linhas de orientação. Por vezes, temos de ser radicais, não podemos deixar falhar nada.
DC - As premiações gastronômicas estão mais "brilhantes" para trabalhos conscientes?
AS - Sim, concordo. Parte do mundo anda acordada para a realidade. E temos de dar valor a trabalhos que se preocupam com a origem das coisas que comes, da maneira como as fazes, das historias que capturas no passado e transportas para os dias de hoje. Esses trabalhos, mais cedo ou mais tarde, serão premiados. É bom termos a nossa consciência tranquila de que estamos no caminho certo e praticamos o bem.
DC - No LOCO, o sabor das estações é presente. Os produtos nacionais são elevados à categoria de estrelas. O alimento é, também, entendido como nutriente à alma. Como você faz a seleção dos produtores locais que abastecem seu restaurante?
AS - Os produtores são a base de tudo. Porque são eles que me fazem ver o que é ou não importante, como deves ou não seguir o teu caminho. Tens de sentir o produto que cozinhas, respeitar, saber a história e, acima de tudo, saberes a origem do que estás a cozinhar. No LOCO, sabemos a origem de todos os produtos utilizados. Só trabalhamos com pequenos produtores, ajudamos o seu crescimento. Assim, ajudamos também, de alguma maneira, a serem felizes. Só trabalhando em conjunto com eles conseguiremos ter um trabalho coeso.
DC - O comensal entende/ exige o que você entende por alta gastronomia?As pessoas estão mais dispostas a pagar pelo valor (preço é outra coisa) da sustentabilidade?
AS - A maioria das pessoas, infelizmente, não pensa muito sobre o assunto. Mas, felizmente, existem outros que se preocupam. Acho que os clientes estão dispostos a pagar pela experiência global, poucos são os que sabem que manifesto temos. Nosso manifesto nos garante o caminho certo até ao fim.
DC - Como é feita a destinação do lixo orgânico e reciclável no LOCO? A arquitetura sustentável é um caminho imperativo, ainda que o investimento seja alto?
AS - O LOCO está pensado para não ter desperdícios. Não fazemos desperdícios orgânicos. Mas, para isso acontecer, temos de condicionar muito o cliente. Temos só um menu, trabalhamos tudo fresco todos os dias e preparamos só para o número de reservas que temos. Só assim faz sentido, independentemente se és criticado pelos teus colegas de que o negócio é ou não rentável. Tens de acreditar no que fazes. Caso contrário, nunca há de ser um sucesso.
DC - Quais trabalhos/ quais chefs brasileiros chamam a sua atenção?
AS- Vejo alguma preocupação do Alex Atala em trabalhar com os povos da floresta, em criar uma pequena economia. É, de fato, para mim, o chefe que mais sigo nesse perspectiva.
DC - Passamos a observar, com mais atenção, os exemplos de pais, familiares e ancestrais. Que prato/ pratos o fazem voltar às origens?
AS - Na realidade, todos os pratos me fazem voltar às origens. Às vezes, são pequenas coisas que nos fazem viver o prato. As origens têm de fazer parte. Nós somos o que vivemos, sem isso não faz sentido.
DC - Você trabalha com menu degustação, um formato bacana capaz de contribuir à compreensão do storytelling/ discurso/ conceito do chef (da cozinha autoral). Esse formato funciona, ainda? O comer compartilhado não nos fisga mais, como fazíamos à mesa de "outrora", em família?
AS - O LOCO foi pensado para pensar nos outros. Ser sustentável é aquilo que nos move. Por isso é que só temos 20 lugares e um turno. Não damos mais jantares que esses. O LOCO só faz sentido com menu degustação, nunca faria sentido com à la carte. O menu do LOCO tem uma história e a proximidade que se sente com o cliente só se sente porque existe o tal menu degustação. Ele poderá estar gasto quando apenas te colocarem comida à frente. Sem história, sem conversa sem explicar por que. Para o à la carte existem outros mil restaurantes que têm o lugar deles. Há espaço para tudo, apenas temos de colocar em contexto o que estamos a servir. Agora, a família, para mim, não é de outrora. A mesa de família deve fazer parte de todos. Ela é a nossa base, não devemos perder isso por nada!
REPERTÓRIO
Silva não foi o único a encontrar a paz trabalhando com o que gosta de fazer. Tampouco o primeiro, óbvio. Pode haver cometido deslizes muitos na busca pelo acerto, claro. Fez e faz. Sei (e não listo agora): há uns bons loucos no Brasil deixando rolar suas baladas e botando muita gente para dançar. Rueda, por exemplo, fraseia lindamente e à moda de viola.
Forrageando ou não (como Silva, René Redzepi e Neide Rigo fazem, por exemplo), um bom cozinheiro entende que o respeito às pessoas, ao meio-ambiente, à lógica do uso integral dos alimentos (desperdício zero) e à recompreensão da relação homem-natureza exige esforço. Afinco. Pensar sobre a origem, o caminho e o fim do que se consome. Pensar. Ampliar o repertório. Food desse jeito não dá para fazer fast.
Essa onda "verde" que apregoa a volta às origens e ao movimento Slow Food [e a que muitos assistem (apenas) do camarote hype] é tão revolucionária e amparada em tecnologia (esse tema também merece outro post!) quanto a própria revolução agrícola sessentista. No sentido "uau" do que se pode produzir de bacana (como não vou estender o assunto agora, não se restrinja ao que há nessas linhas, apenas; entrelinhas valem mais; bem como análise e contexto).
Seria, portanto, capaz de impulsionar os novos hábitos de consumo para o "caminho da sombra" (quem gosta da gente sempre aconselha o "vá pela sombra"...). Ou mais revolucionária, diria. Porque algorítimos, Big Data, novos gadgets culinários e Inteligência Artificial, por exemplo, se cruzam em nosso caminho e trançam as pernas dos chefs nas cozinhas. O que fazer com tudo isso?
Observar e "ler" comportamentos é mais importante que aplicar pesquisas. E os bons elementos já entenderam que a gastronomia de amanhã só pode ser sustentável... Esses cozinheiros, sim, ditarão tendências.
Quero crer que os chefs referência daqui para o futuro, ou cujos trabalhos são divulgados a longas e improváveis distâncias na velocidade de bites e bytes das 4ª/ 5ª revoluções industriais, serão aqueles seres praticantes da gastronomia sustentável. Que compram localmente, que estimulam o pequeno produtor, que entendem da sazonalidade e ponderam sobre a necessária cisão com antigos modelos produtivos. Que geram novas demandas e, de forma magistral, educam o gosto de seus comensais - de paladares tão industrializados e infantis (em maioria). Que mensuram seus próprios rastros - ou pegadas ecológicas estreladas - e não têm problema algum em apontar o dedo para si, a fazer o mea culpa.
Imagino, ainda, que não seja preciso entender de astrofotografia ou pós-impressionismo para ler o registro do caminho que os melhores cozinheiros deveriam e devem (no sentido de "seria ótimo se realmente fosse assim desde sempre") fazer pelo céu gastronômico. E que seja, um dia, menos dificultoso comer comida boa - o acesso à informação muda as regras dos jogos.
Vejamos. Logo tem lista dos top again. O ranking da revista britânica Restaurant, que há 15 anos elege os 50 melhores restaurantes do mundo - World’s 50 Best Restaurants - será divulgado no próximo dia 8 de abril, em uma cerimônia para poucos sediada no Royal Exhibition, em Melbourne, Austrália (mas transmitida para milhões, via World Wide Web.
Hoje, sabemos, the best é o Massimo (e não há como desfazer o trocadilho). O mesmo cara que salvou mais de mil rodelas de Parmigiano Reggiano, assim "al" Cacio e Pepe, em 2012, com versão de risoto, depois do terremoto que atingiu a região da Emilia-Romagna. Que cozinhou com sobras em Milão (vide Food For Soul), que defende a ideia de que cozinhar é uma chamada para a ação (mais eficaz que o Call To Action - CTA - do marketing, "serião", porque não permite desculpas); entendeu a importância de se fazer o mesmo e, portanto, estimular o combate ao desperdício, no ReffetoRio Gastromotiva, na Lapa (Rio de Janeiro/ RJ) - projeto bacanudo de David Hertz (cozinheiro à frente do Gastromotiva) e Alexandra Forbes (jornalista e cicerone gastronômica). Massimo é um cara legal.
E quem será o máximo dali a pouco? No Brasil, quem liderará um novo e robusto movimento, de fato, responsável? Em tempos de carne fraca, "esses" de saudável e de... Quem são os nossos caras?
Listas são subjetivas (embora haja - ou deveria haver - uma série de passos metodológicos a fim de execrar o excesso de achismo/ opinião dos jurados). E exercem um poder de "influência"... Sobretudo se divulgadas ao sabor de shares e reactions.
E agora? O que é "alta" gastronomia?
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