Sobre a nova mitologia gastronômica e o comer telado
Sobre a nova mitologia gastronômica e o comer telado
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Érica Araium
Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.
Sim, é preciso ponderar. Espiar o que escreveu Wilson Roberto Vieira Ferreira, autor do blog Cinegnose e pesquisador da área de comunicação ponderou, e nomeou de "nouvelle mythologie" no post "A nova mitologia gastronômica". E perscrutar. Há sim uma sensação de pertença à lógica arquetípica de Campbell no que vemos na TV. Mas, seriam os "programas de comida" feitos para entreter ou informar? MasterChef é mesmo só para a massa?
O continuum dado-informação-ideação-criatividade-conhecimento-sabedoria é uma teoria bem mais velha que eu. Numa ponta, em linhas gerais, tem-se as chamadas para a ação. Noutra, a ação propriamente dita. Ou o resultado da compreensão de um valor, conceito, proposta etc. A gestão do conhecimento deriva da gestão de informações. Chegamos até aí? Bacana. Vamos voltar a falar de sabedoria adiante, misturada à comida.
Vivemos na era do BIG DATA. Em suma, há dados sendo produzidos em grande volume (2,5 exabytes por dia) e, para encontrar algo que preste na tela da TV (ou noutros gadgets), é preciso dedicir entre: compreender a jornada do herói Rodrigo Hilbert e interessar-se pela "persona" que ele é por iniciativa própria (pesquisa, apuração de dados, entrevistas, checagem de percepções, análise de donteúdos, produção de informação relevante e tal). OU, muito mais fácil, repetir, que nem papagaio, que ele é a+b+c+d, conforme ene pessoas anteriores já disseram.
Sim, desde a o início da cultura de massa, ou da indústria cultural, lá nos anos 1960, o "gosto" veio sendo padronizado. E a mídia, como sabemos, comandada por marcas sustentadas pela massa (Orwell, de 1984, A Revolução dos Bichos, outros). Lá nos anos 1960, também, um jornalista, francês, apto a construir argumentos, teorizou o "gosto" dentro da comunicação. Dizia Pierre Bourdieu que tudo que a gente consome, enquanto informação, é decisão íntima de foro privilegiado (parafraseando, ok?) - e podemos ou não sofrer influência de veículos de comunicação neste processo. Não, eu não vou estender esse papo para lá de qualquer coisa aqui, fica para os estudos.
Ok. Contudo, os veículos de comunicação tendem, desde lá, portanto, a reproduzir um disurso "construído" - note que a abordagem de boa parte "da mídia" (que é outra coisa, hoje, em nada se compara ao que achávamos que era mídia até 1990). Enlatado. Pronto para ser "absorvido" pelo leitor/espectador. Parecidinho. Com personagens certos para posições definidas. Em cada "atração".
No meio disso tudo, jornalistas, intuitiva ou tecnicamente, como lhes compete, contam histórias memoriais - de forma imparcial, por favor, a não ser que lhes seja solicitada a construção de um editorial ou artigo (como este) ou coluna. Ou conto, que de mitologia sempre tem de um tudo.
E TODA boa história remonta à lógica da Jornada do Herói. Seara da psicologia, do Joseph Campbell, que estudou mitologia (!) e tal. Toda história tem personagens. Herói, vilão, bobo da corte, fora da lei etc. São 12 os arquétipos (ou personas) que, tais símbolos, inspiram pessoas a contarem histórias, lembra? Beleza.
Rodrigo Hilbert é um heroi ou um "Cowboy Fora Da Lei"? Soa "inocente"? Por que raios foi o belo moço mostrar o processo todinho de seu novilhinho na TV, com o bicho mortinho em frente às câmeras?
O que Ferreira, autor do blog Cinegnose e pesquisador da área de comunicação pondera, e nomeia de "nouvelle mythologie" no post "A nova mitologia gastronômica", é a relação semiótica (estudo dos signos, da maneira como nos comunicamos) que construímos assistindo ou produzindo programas de TV. E trata de personagens e narrativas gastronômicas que são destinadas a grupos de consumo. E recorre a outro francês, Roland Barthes, aquele de "A Câmara Clara", que também fala de semiologia dos meios, da manipulação das informações e do studium e punctum na fotografia (coisa que quem ama food styling e foto de comida precisa estudar).
De fato, não. No contexto de agora, o aproveitamento integral de foie gras é bem diferente de aproveitamento integral de timo. Mas crista de galo já foi comida de rei, outrora, até onde lembro, quando de exótica tinha nada. O empratado era do frugal para o substancioso, bem diferente do comer de já. E "porco na lata", processo lindão, é tão preciso e aplicável quanto o confit. É.
E jogar fora aparas de mandioquinha, quando o que se tem em casa/ no estúdio, em frente à câmera/ à TV, é farinha artesanal [de fato] sobre a mesa (aquela feita de mandioca, rugas, marcas de sol e dedos ralados pela necessidade de carpir-se a capoeira), significa o que mesmo?
Não enxergou a cena? Vou lhe dar uns briefings do que eu poderia estar vendo quando pensei em escrever os dois parágrafos anteriores. Suponha que você seja o sortudo estudante de gastronomia que pretende ousar no bolo de cenoura sem glúten e sem açúcar que ouviu dizer ser bom. Ah! Pegou a receita com o amigão, via link compartilhado no Insta (porque já é íntimo da tecnologia). E acaba de pedir um help à funcionária mais velha do restaurante onde estagia e que cozinha desde os oito anos de idade. E ela bem ao seu lado. E ambos vendo Hilbert cozinhar na TV. Quem você viu?
Beleza. Onde quero chegar? Semiótica e semiologia, juntinho de Ferreira. O que é fome? Para quem? Sob que contexto? O que é lixo? E o que é aproveitamento integral de alimento? O que é alimento? Em que cultura? O que é cultura? A culinária brasileira sempre foi emoldurada por aura sem glutén (vai dizer que macaxeira tem glúten?), mas os ianques e outros caras fizeram o favor de nos facilitar a vida ao exportar farinha branca processada, por exemplo. Verdade, né. E pensar que nem seria preciso plantar e debulhar o trigo transgênico mais, sobretudo dos anos 1980 em diante. É que ralar mandioca, agora virou algo tão "in" e "cool" e "trend" super "artesanal" "home made", não é mesmo? São meras interpretações possíveis de um mesmo cenário televisivo - ou telado.
Talvez você assista ao Hilbert porque ele representa "o homão" numa sociedade de "homenzinhos" (refiro-me a homens e mulheres quando generalizo com "homenzinhos" e homão e o inho, diminutivo, pode ser o que você quiser, ok?). Talvez ache-o um hominho e questione-o por haver sacrificado um novilho porque jamais se importou em saber de onde veio o atum enlatado da janta ou o ovo ou a galinha que consome. E só falamos de proteínas porque é este o contexto do parágrafo. Aliás, lembra do que aconteceu no Mesa Tendência de 2015, ao-vivo, para um auditório cheinho? Chefs sulistas (como Hilbert) demonstraram que o que é aproveitamento integral de alimentos. E a chef Neka Mena Barreto, também sulista, mas radicada em São Paulo, até ralou mandioca para tecer acerca da compreensão de seu uso culinário.
A fome, talvez, nunca o tenha feito arregaçar as mangas para cultivar, esperar, matar ou morrer para comer. Talvez você só não saiba o significado de "comer". Porque todo verbo pede ação, mas quem as realiza são sujeitos...
Obviamente, a mídia, o marketing e as marcas (o branding, portanto) se estapeiam por audiência mais que nunca. Relevância é a palavra da vez. Tempo, a nova moeda. Por que assistir ao MasterChef e não ao The Taste ou ao Super Chef? Quanto mais o espectador se identifica com a persona que está adiante, mais tempo dedica à atração, não importando a finalidade midiática para a qual tenha sido, originalmente, construída.
Quando Ferreira chama a atenção à "padronização das pautas da vez", e nesse contexto 4.0 do século 21, lembro-me de que há A.I.'s (ai, gente, inteligência artificial, ok?) bem mais profundos nos bastidores dos escritórios criativos das marcas ligadas à comunicação.
Se, antes, o gosto enlatado podia ser aferido em pontos, e olhe lá, com ajuda do IBOPE e institutos de pesquisa (que erram para mais ou para menos)... Desde o início dos anos 2000... as métricas que se deseja estudar podem ser determinadas off-line e checadas, em tempo real, on-line e em multicanais. Vai dizer que nunca tuitou enquanto assistia ao MasterChef ou mandou "ufes" pro coleguinha, pelo Facebook ou Whatsapp, enquanto assistia à reapresentação do Que Seja Doce, no tablet, enquanto Hilbert, sempre Hilbert, "passava na timeline" da sua TV paga - que agora acordou para ser paga e on-demand, porque somos multicanal e über conectados?
Enfim, tudo vai bem no artigo de Ferreira, que nos lembra da linha do tempo dos programas de culinária e esboça a tradução da função de cada persona e programa na vida cotidiana... Até aqui: "desde que a apresentadora Ana Maria Braga usou um colar de tomates (metáfora tosca para alertar para um suposto descontrole inflacionário do legume – ou será fruto?) para apresentar novas receitas ao distinto público, a mitologia alimentar foi convocada para a guerra semiótica".
Aí, passamos de conhecimento compartilhado à construção de uma teoria da conspiração gnóstica. Nada contra. Só não sou o target, creio. Para o autor, por exemplo, o termo "coxinha", usado para descrever um "persona da sociedade", o riquinho bonitinho e empreendedorzinho, pode ser substituído pelo "simples descolado" - Bela Gil podia mesmo ajudar neste processo. Come on. E sustentabilidade é "modinha", então? E a mídia gastronômica trata disso porque é mesmo muito natural comer aquela carne de confiança, que tinha nome, até outro dia, né? CLICA AQUI PARA SABER O QUE EU PENSO SOBRE SUSTENTABILIDADE.
Hilbert, então, é descrito no artigo como o tal "simples descolado" a que se refere Ferreira. Que estrela um programa da série "gourmetização para a elite", porque MasterChef é para "a massa" (tudo bem, TV aberta ainda é TV aberta, né, amigo). Contudo, concordo que é mesmo verdade e triste notar que, nalguns episódios de programas culinários (chamar uns de gastronômico, na real, é até leviano)... É "constrangedor ver (...) mulheres paraibanas assistindo ao ariano Hilbert servindo para elas seus próprios pratos seculares". E acontece...
A revisitação da comida secular deveria ser desincentivada se, antes, não houver, sequer, o mínimo processo de ambiência, que decorre de empatia e de abstração. De produção de conhecimento. Deite a faca e o garfo em riste. Use as mãos, epa. O contexto do outro é do outro. Cada gente é um país. E nas trocas de receitas, há fronteiras, quero querer, que não se devem romper à moda forçosa do conhecimento que se tem sobre as técnicas mais modernas da cozinha molecular, por exemplo, ou da neura pela descoberta do exotismo. Respeita as receita, porra.
Quer criar receita? Estuda, moleque (ouça a voz do "comédia" do Herique Fogaça nesta parte que ajuda). O receituário nacional indígena, certamente, se confunde em etnias. E percorre rios e sois até azedar e virar tucupi. É lânguido e vai se avolumando na bubuia das referências. No processo de transmissão de conhecimento sobre a comida e o comer, memória oral ajuda, desenhos idem e, mais tarde, a escrita e, então, os bytes.
Se algo é certo, e aí vejo, sim, a jornada do heroi na minha frente, é que os programas gastronômicos, em maioria, não tem como objetivo/meta "educar" ou "informar", mas entreter. Há exceções. Mas entreter. Entreter. Fim. Com ou sem placement. Com ou sem content marketing. Com ou sem business inteligence associado à melhoria de user experience. Invariavelmente, sustentados por marcas, que arrastam a massa, afeita pelo gourmet, raiz, nutela ou pelo artesanal. E deixa disso. Tem, sim, arquétipos ali. Personagens! Audiência. Relevância, já não sabemos se para você, mas para o Zezinho, sim, pode haver, uai.
Ensinar é outro processo e nem mesmo receita se ensina, se compartilha. O processo de cozinhar com o que está na receita, então, se demonstra - porque a aprendizagem do bolo, com ou sem glúten, "aquele", decorre da aplicação do conceito, no início por imitação, num processo mais individualizado. Né não? Ficar fofinho e gostoso é outra coisa. É processo. E só arranca suspiro se, dentro da massa batida, há motivação para fazer crescer (sabedoria).
Por falar em aula... Agora, sejamos coerentes. Em gastronomia, o academicismo não pesa tanto quanto as competências. Ainda que se tenha lido Pollan, Cascudo, Dória, Savarin e decorado Petrini. Laurent Suaudeau, Jefferson Rueda, Alex Atala e outros nomes dariam excelentes professores e lotariam cursos. Que formato haverá para aulas teóricas de gastronomia, no futuro? Por que não considerar a entrega de conteúdo sob demanda, com base em uma grade mais voltada à realidade que à teoria? Sala de aula para quem? É para se pensar.
{module [160]}