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Educar é despertar inquietudes

Educar é despertar inquietudes

| Pensamentos devorados

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.


Em A Vida das Plantas (2018), Emanuele Coccia traz a alegoria da razão como semente. Nessa espécie de tratado cosmológico, o filósofo italiano mostra que a vida só funciona se interligada, como as plantas que, indubitavelmente, se conectam. Diz ele que “a razão cósmica e natural é a semente". Seu símbolo é a razão-flor, “uma força de multiplicação do mundo”. As flores só querem sexo. O cérebro só quer vida. O fruto só quer amanhãs. E as sementes, quem delas cuida?

“Pensar é sempre se implicar na esfera das aparências, não para expressar sua interioridade oculta, nem para falar, dizer alguma coisa, mas para pôr em comunicação seres diferentes”, prossegue o filósofo, com quem pondero. Educar é despertar inquietudes.

Prefiro ser raiz a semente. Se não houver, tampouco haverá fruto. Eis o papel do educador. Enraizar a dúvida. Semear respostas. Colher futuros, não sem antes interrogar as plantas a fim de compreender o que é estar-no-mundo. Elas são “o observatório mais puro para contemplar o mundo em sua totalidade”. Dizem tudo. E olha que trabalham em silêncio. 

Dão ar, dão sombra, preservam as encostas, servem aos leitos de rio e ao afofar do celeiro, nutrem o gado, a galinha, o salmão já rosado pela vergonha alheia de quem se questiona: pra que tanta planta, meu Deus! Amazônia, que balela! E os índios que salvaguardam os territórios intocados seus seres desconhecidos, que sumam da frente da ganância.

E sobre os infinitos discursos latentes? Qual o papel da mídia nos processos de diálogo sobre a educação alimentar? Se se propõe a dizer, mais do que ouvir, peca pelo excesso de informação, pela entrega de “calorias vazias”. Determina as novas dietas e coroa heróis e vilões nas gôndolas dos supermercados – reais ou virtuais.

Se se propõe a ouvir demais, estrategicamente, peca pelos silenciamentos constantes enquanto pondera sobre argumentos convincentes a serem entregues no “momento certo”. Pois a mídia sabe negociar a entrega e o negligenciamento de informação - tudo depende de quem por ela pagar para chegar até a massa (Orwell).

Por outro lado, o consumidor, agora empoderado, pode passar a neoconsumidor e a modificar contextos pelo apregoar de novas escolhas. Então, o que se entende por gastronomia sustentável, hoje, no Brasil?

Os silenciamentos, ah, esses também dizem muito. O tempo de calar importa tanto quanto o tempo de agir. Há uma série de discursos desgastados e muitos não-ditos. O que os educadores querem dizer quando “se omitem” sobre a necessidade de que nos reconectemos à maneira mais orgânica de nos relacionarmos com o alimento?

Porque se somos meros consumidores, somos meros devastadores. Esgotamos todas as possibilidades. Desconhecemos a localidade, a urgência dos alertas ambientais, a noção de que o desperdício nos tem deixado fartos de ais e sobrepesados. Obesos de informação, mas malnutridos em conteúdo.

Uma criança como Manu, que vive em Campinas e hoje tem três lindos anos, que planta e colhe seus morangos, instigada pela família e pela escola, entende que o desejo pela fruta independe de seu poderio de compra. Compreende que a negociação com a natureza deve ser na base da água, do adubo, do sombrear e do tempo. Ao final de um longo ano de investimento em mãos na terra, o melhor morango virá. Manu sabe o que está na época. Reconhece um morangueiro à distância, ainda que a fruta que ama não avermelhe qualquer despensa natural.

Manu não sabe, mas somos humanos mimados desde os anos 1920. Adultos bossais a ponto de crer que o agro é pop (e não tóxico). Incapazes de ler rótulos, rotulamos o gosto que não sabemos construir ou reconhecer, conceito que Bourdieu e Savarin intentavam dominar.

Toda escolha define a paisagem que veremos adiante. De onde veio o alimento que chegou até você? Por que ainda não foi até ele? O que plantou hoje? Quem é o seu agricultor referência - não vá me dizer que seu super-herói é um cozinheiro e que você desconhece quem faz parte da liga que o mantém poderoso... A quem se conecta? Com quem se importa? De volta à filosofia, podemos?

A noção de atmosfera que nos cerca pode ser entendida no sentido mais simbólico como a conexão entre todos os seres. Nela estamos imersos e, em todos os casos, as plantas fazem a mediação entre os seres vivos que coabitam. “A vida é uma ruptura da assimetria entre continente e conteúdo. Quando há vida, o continente jaz no conteúdo (e é, portanto, contido por ele) e vice-e-versa”, pondera Coccia. Um sopro (pneuma) e o ar contido contém.

Uma ponderação epistemológica. A humanidade subjugou a natureza a tal a ponto de estabelecer uma nova era. Criamos o Antropoceno (Crutzen) embebidos numa noção exploratória sem limites. Desconectados do senso de pertença, de situação, de amabilidade. Dessituados, apontamos a calamidade dos derretimentos, dos desmatamentos, dos assoreamentos e dos lamentos pungentes de fome como quem pretende culpar a “evolução” pelo caos. A culpa é de nossas revoluções em série, a começar pela industrial, talvez.

Fato é que a desolação é sapiens, pouco importa o julgamento que houver. Cruzamos oceanos na tentativa de colonizar o outro a fim de dobrar as certezas – ou esperanças. Capitalizamos para prosperar nos esquecendo de que a riqueza emana da sapiência das transformações mais singelas, cotidianas, gratuitas da vida. Dos princípios da conservação da matéria, da manutenção dos átomos, resta um tanto de sobriedade. É preciso reciclar afirmações vazias. Para (re)educar, é preciso descolonizar o pensamento. Botar a mão na cabeça. Semear.

Arte, ciência e filosofia podem, sim, coexistir por um bem maior: o conhecimento. Não é preciso colocar o pensamento e a criatividade em caixinhas isoladas do tempo de estudar. O devir agente de transformação perpassa a noção da antropofagia, da alimentação. Nos nutrimos de ponderações lancinadas por outras sinapses. Bem como admitimos moléculas alheias aos originais para compor novas matérias. Comemos. Transitamos entre crus e cozidos (Lévi-Strauss) pelo mérito dos sistemas simbólicos.

Se temos o mesmo trato digestivo, o que determina, então, a repulsa ou a afeição por ratos, tripas e coleópteros? A barbárie é determinada pela aura de significados de sujeitos históricos que, em diversos tempos, absorveram, ressignificaram parafrasearam e redisseram infinitos discursos sobre o que se deve ou não levar à boca? Se há cartilhas de etiqueta e manuais de instrução sobre o que se deve ou não comer e em quais condições, servem essas a seus determinados tempos – e aos seus atores na comensalidade/ sujeitos históricos – e, então, viram registro memorial a ser consultado em tom de descoberta: um grande almanaque de curiosidades.

Não fosse assim, a crista de galo confitada que um dia (contexto Brasil, século 16) fora comida de reis não teria sido malquista por uma sociedade hype, embora quase démodé, encantada pelo que o Brasil passou a entender por “alta gastronomia”. Vide depoimento de Alex Atala (Trip, 2006) sobre esse mesmo acepipe, servido no início do D.O.M., na curva da virada deste século, para entender que comer é um verbo ativador do diálogo. Só se lança ao comer conjugado o sujeito histórico despido da “verdade” – ou daquilo que é tido como certo, porque sabe que a dúvida tem sua graça. Sua divindade. Só se lança à novidade o desapegado de si mesmo.

A educação alimentar, portanto, não pode estar entre o vigiar e o punir. Carece despertar a participação – muito mais que a interação. Fala-se tanto em empoderamento do consumidor... Em experiência...

E se empoderar-se o neoconsumidor (acepção de Petrini)? E, se mesmo no Antropoceno, houver humanidade pela diversidade? E se a proposta for reconhecer um pé de fruta sem o fruto? Colher PANC e testar aplicações? Descobrir novos nomes e texturas, novos alimentos. E se o gosto não for delegado a outrem, mas construído em camadas de partilha? O comer junto pressupõe o diálogo. A conexão. O repartir. Convida à conversa, ao hábito de estar em volta da mesa, item importante desde o século 17.

E se, em volta de quaisquer mesas respirarmos o mesmo ar? E se as escolas e a sociedade entenderem que são parte da mesma atmosfera? Que pneuma não é celeuma? Que o alarido midiático sobre o que comer ou deixar de comer fará mais sentido se a divulgação cultural e científica perceber que a paisagem, toda ela, é comestível. E que as redes sociais não podem meramente decretar vilões ou mocinhos porque as interpretações rasas sobre as novas dietas da moda disseram que “é verdade” e “cabe na internet”. E se os novos jornalistas sacarem que importa dizer mais sobre a comida e todos os verbetes que a ela se associam. E se percebermos que estranho é mudar fronteiras para decretar controle (e não pujança e sobrevivência)?

Podemos comer de tudo. Desde que, tal plantas, conectadas entre si, mas em torno da mesa, tenhamos noção de que o mundo é vasto, Raimunda. Não cabem rimas. Mais vasto é meu coração.

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