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Alimento e informação como sinônimos de um mundo mais criativo

Alimento e informação como sinônimos de um mundo mais criativo

| Pensamentos devorados

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.


Se você é criativo, esse texto é para você.

Se você participou do workshop "Todo comer é você quem desenha: duvida?" do World Creativity Day 2024, esse texto também é para você.

Workshop de food design e comunicação que visa promover a saudabilidade e a biodiversidade por meio da criatividade.

 

Antes de começar a ler: toda vez que falar em alimento, estou falando de informação. E vice-versa.

Quando pensamos em criatividade, pensamos em uma jornada em que há um encadeamento de ideias. Não criamos “do nada”, tampouco, sozinhos. A nos amparar, há uma vasta rede de autores que se debruçam sobre este tema. Neste texto, trago algumas referências e citações que julgo pertinentes.

Quando penso em criatividade, mobilizo, também, um repertório pessoal multidisciplinar que me permite estabelecer associações, formular definições e propor caminhos que, talvez, você não tenha pensado antes. Este encontro do Dia Mundial da Criatividade serve para compartilharmos repertórios, experiências e para que dialoguemos sobre o futuro. Ainda que se repita, noutro momento, valendo-se da mesma metodologia, esta prática não trará o mesmo resultado. E isso é perfeitamente bom.

É preciso compreender, antes, o que que é processo criativo. "A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo, sem ponto inicial e final, é um movimento falível, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas". (SALLES, 2017, p.117, grifo nosso).

Lembro-me, aqui, de um trecho de uma música de Lenine (“O que é bonito”): “Eu gosto é do inacabado. O imperfeito. O estragado que dançou”. Poderia citar outras canções e estabelecer outras conexões. Mas desejo, apenas, pontuar uma possibilidade ao compartilhar mais sobre o meu próprio processo criativo: nele, sempre há silêncio e sempre há música. Em rede, ele se torna mais rico.

A despeito de tantos estímulos no contexto do BIG DATA, é preciso reconhecer quão paradoxal é “criar” algo relevante num mundo tão superficial e rápido. Vivemos imersos num mundo BANI, sigla em inglês para Brittle, Anxious, Nonlinear e Incomprehensible. Em tradução livre, Frágil, Ansioso, Não-linear e Incompreensível. O conceito foi criado em 2018 pelo antropólogo norte-americano Jamais Cascio e ganhou relevância após a pandemia de coronavírus. Quando aceleramos os processos criativos e a busca por inovação e soluções, o que nos causa um efeito positivo no sistema dopaminérgico, que ativa sensações de recompensa. Se criar algo bom nos faz felizes, queremos mais.

 

TEMPO DE CURAR PARA CRIAR

 

Há outras definições de “momento mundo” que acolho, com sorte. Vivemos num tempo em que justamente o tempo é a moeda corrente. Há a intensificação do consumo, da busca por novidades e da valorização da individualidade e da experiência – são tempos hipermodernos (Lipovetsky, 2007). Tudo, aliás, passou a ser categorizado como “experiência” e há um estímulo ao monitoramento da experiência dos indivíduos. O efeito “recompensa”, tão dopaminérgico que citei antes, é estudado desde o início do século XX. Somos os novos cães de Pavlov para as bigtechs e para a maioria das marcas dedicadas a estudar neurobranding e neuromarketing como se deve.

Para refrescar a memória: Ivan Pavlov (1849-1936) foi um médico russo que treinou cães para que salivassem ainda que não houvesse comida por perto. No experimento revolucionário, cada vez que o bicho era alimentado, ele ouvia uma sineta. A associação entre o som e o alimento condicionou os cães a salivarem. Mesmo com a tigela vazia, os cães salivavam ao ouvir a sineta. Em 2024, quem não “saliva” ao ser notificado por uma rede social e corre para seu dispositivo em busca de “alimento”? Os reflexos condicionados servem de base à análise do comportamento de consumo. E, quantas vezes, não agimos em bando, em comunidade? Somos cada vez mais levados a – às vezes, sem tanto critério. Os alimentos que comemos, por exemplo, comemos por escolha ou por contexto? As informações que consumimos, consumimos ativa ou passivamente?

 

 

 

Ressalto que há uma convergência entre comida e cultura. Não apenas consumimos alimentos como uma necessidade fisiológica, mas também como uma expressão de identidade, de estilo de vida e de pertencimento a grupos sociais específicos. Da mesma forma, o consumo de informações sobre alimentação está intrinsecamente ligado à cultura, às tendências sociais e às mudanças no comportamento alimentar.

“Em troca de dados pessoais para a navegação em meia dúzia de sites ou em redes sociais; ou ao preencher formulários ou o que for; ou ao acessar às redes de Wi-Fi via check point, os esforços de marketing, branding e vendas, com um empurrãozinho da neuromarketing, são geniais em fazer com que a terceirização do gosto ou a premeditação dele, no sentido do consumo, também ocorra. O consumidor é e será cada vez mais “levado a”. Momento para déjà vu para 1984 de George Orwell ou para o contemporâneo meme “isto é tão Black Mirror”. (ARAIUM, 2022)

Ao mesmo tempo, a sociedade é insaciável. Busca e rebusca o já citado efeito dopaminérgico para curar o efeito pêndulo do tédio ao sofrimento. Vive mais pelo imaginário da comunicação do que vive pela própria imaginação e criação. Há uma obsessão pela interatividade e tudo vira mídia, conteúdo, post. Aqui, lembro do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) e trago a noção de “modernidade líquida” e me amparo nela para dizer que estamos cada vez menos dispostos a pensar e planejar as coisas, a vivenciar longos processos e longas jornadas, pois elas nos dão muito trabalho. Pensar, realmente, dá trabalho. E pensar de forma crítica – até que atinjamos a elucidação, o “eureka!”, até termos uma super ideia... – dá muito mais trabalho.

É útil dialogar para encontrar caminhos mais humanos. Enxergar na diferença (na dialética) um caminho para a novidade. Afinal, não se consegue um melhor resultado fazendo sempre a mesma coisa, correto?

Para além de Bauman, trago o querido filósofo francês Gilles Lipovetsky, citado aqui anteriormente, para falar de outros cinco conceitos em que estamos imersos: a hipermodernidade (desde os anos 1980), a era do vazio (metáfora), a felicidade paradoxal, o império do efêmero. A era da confusão. Vivemos entre o excesso e a moderação, entre o máximo e o mínimo – isso também é contraditório.

E o que a gente chamava de quarto poder (a mídia, até meados dos anos 1990), tornou-se o poder de “moderação” ou de curadoria ou de revisão e limpeza da desinformação. Afinal, com tanta informação/ alimento disponível, “alguém” precisa delimitar melhor os territórios de confiança. Sinceramente, você confia mais na imprensa ou em um influenciador? Espero que a resposta, ainda, seja: depende. A verdade é que estamos rasos de tanto “too much” e há gaps de informação a todo tempo. Sem ética e responsabilidade, derivamos ao imediatismo, ao consumo de muitos conteúdos sem nenhuma profundidade.

Acredito na criatividade como potencial humano (nível individual) e no criar como um gesto coletivo da inovação (nível cultural). E entendo que, para que o processo criativo ocorra, precisamos estar em movimento. Isso, por vezes, não é muito confortável.

 

 

DIVERSIDADE: CAMINHO À INOVAÇÃO

 

Acredito, também, que a biodiversidade pode ser uma causa mobilizadora e nos trazer uma tomada de consciência acerca dos problemas do futuro. Afinal, à medida em que percebemos que estamos consumindo os mesmos produtos, entendemos, mais facilmente, que geramos uma demanda muito específica por insumos que, a médio prazo, poderiam fazer outros tantos desaparecerem.

O que ocorreria se todos nos tornássemos veganos; ou se desejássemos consumir apenas batatas de uma hora para a outra? Pensar sobre novas formas de consumo a partir de novos pontos de vista pode ser muito útil. Vale conferir Varda Por Agnès (2019), documentário em que a cineasta francesa Agnès Varda (1928-2019), ícone da nouvelle vague, revela seu processo criativo e traz à luz obras como Patatutopia (2003), uma instalação derivada do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse (2000) em que a cineasta investiga as possibilidades de aproveitamento e reutilização daquilo que é rejeitado pela sociedade de consumo. No caso, batatas fora dos padrões, algumas em formato de coração.

Toda vez que revisito essas referências, sobrevoo a “certeza” de que, se pudermos escolher melhores alimentos a partir de melhores informações, termos melhores alimentos em todos os sentidos. Essa premissa me é muito cara e inspiradora. A partir dela, crio o que quiser.

 

 

Entendo que, quem define a relevância (das informações), são os consumidores com seus próprios critérios – ainda que sejam ou estejam condicionados a agir de certas maneiras. As notícias sobre nutrição e saúde que consumimos influenciam diretamente as escolhas alimentares individuais, cotidianas. Pautas como segurança alimentar, práticas sustentáveis, origem dos alimentos e impacto ambiental norteiam decisões mais éticas e responsáveis globalmente.

Pondere: como você define o que vai comer no almoço e ler no jantar? Como saber que alimentos fazem bem ou mal, cientificamente? Que tipo de fonte de informação você considera relevante para tomar uma decisão de consumo? Por quê, de 2022 a 2024, houve um expressivo consumo e interesse, no Brasil, por pistache, sendo o país produtor de castanha-de-caju e castanha-do-Pará, não de pistache? Por quê a Páscoa de 2023 e 2024 foi tão colorida de verde? Estamos, aqui, falando de novos comportamentos do consumidor. E de um novo mundo que pode ser desenhado coletivamente.

 

O DESIGN GASTRONÔMICO

 

Pude me arriscar dizer, ainda, que “o acesso ao alimento desenha a gastronomia, modela os comportamentos sociais, desenha o chef de cozinha e a imprensa gastronômica capaz de redefinir, palavra a palavra, o acesso ao alimento... Que desenha a gastronomia, modela os comportamentos sociais, desenha o chef de cozinha e a imprensa gastronômica, capaz de redefinir, palavra a palavra, o acesso ao alimento...” (ARAIUM, 2022).

“Por que o mundo da cultura, no sentido burguês do termo, ou seja, os grupos humanos que produziram e desfrutam a ciência, a filosofia, a literatura e as belas-artes, exerceu por tanto tempo tal atrativo? Provavelmente porque se aproximou, à sua maneira elitista e imperfeita, de um ideal da inteligência criativa. Eis algumas normas sociais, valores e regras de comportamento que regeriam (idealmente) o mundo da cultura: avaliação permanente das obras pelos pares e pelo público, reinterpretação constante da herança, inaceitabilidade do argumento de autoridade, incitação a enriquecer o patrimônio comum, cooperação competitiva, educação contínua do gosto e do senso crítico, valorização do julgamento pessoal, preocupação com a variedade, encorajamento à imaginação, à inovação, à pesquisa livre”. (LÉVY, 1995, p.120)

Amplio toda essa discussão sobre a gastronomia em meu livro “Diálogos Comestíveis – porque todo comer é você quem desenha” (Editora Dialética, 2022), do qual já trouxe alguns excertos. A seguir, compartilho mais um pouquinho, na íntegra.

enlightened“Acredito que “entre a inspiração detonada pelo insumo e seu gosto (que servirá a ingrediente de uma preparação, a posteriori), ou pelo texto (poesia, música, literatura, filme etc.) ou pelo “silêncio”, conforme Orlandi (1997). E a preparação da “obra” - a comida empratada/ servida, tem-se uma rede de discursos a ser acolhida, uma “rede de processos de criação”, conforme Lunardelli (2017), que se dedica à compreensão do processo criativo dos chefs de cozinha, útil aos jornalistas de gastronomia que pretendem “se despir do gosto e dos julgamentos pessoais” em seus textos.

enlightenedO projeto gastronômico, que culmina em processo criativo, é “pensar em movimento e continuidade: um tempo contínuo e permanente de rumos vagos” (SALLES, 2008: 59 apud LUNARDELLI, 2017, p. 70). Ele pode derivar, portanto, de longa e detalhada pesquisa de campo e contato estreito com os produtores, de esboço e croqui do prato; do design gastronômico do serviço (escolha de objetos que irão à mesa, uniformes, guardanapos, talheres e demais objetarias etc.). Podendo haver o planejamento de food styling para a preparação de fotos de divulgação e afins, o design arquitetônico da escultura que servirá a uma gastroperformance (conforme define a gastroperformer Simone Mattar) na recepção dos comensais etc. Um sem-fim de propostas, de único autor ou de um coletivo de autores pode dar corpo a um “diálogo comestível” – termo que, aqui, se situa no intradiscurso. (ARAIUM, 2022).

enlightenedPara pensarmos um pouco além, trago, por fim, uma cadeia de verbos que, se bem conjugados, podem nos levar a novas maneiras de consumir alimentos e informações com um pouco mais de critério: a necessidade de comer nos leva a consumir. No entanto, antes de consumir, seria prudente apurar-se melhor o que será consumido – alimento, seja ele informação ou comida, num sentido amplo. Consumar o consumo de forma consciente, responsável e humanizada nos leva, mais energizados, a criar.

 

 

COMER | CONSUMIR | APURAR | CONSUMAR | CRIAR

 

 

Ilustração de Érika Pozertti. Fotos: arquivo Diálogos Comestíveis. 

 

 

 

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