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35 Fragmentos, o pensar gastronômico de Simone Mattar

35 Fragmentos, o pensar gastronômico de Simone Mattar

| Pensamentos devorados

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.

Érica Araium

Idealizadora de Diálogos Comestíveis, estrategista de branding, marketing e comunicação. Jornalista. Palestrante. Ávida por #MotivosParaDialogar.


Trinta e Cinco Fragmentos. Gastro-performance? Gastro performance? Gastroperformance? Sim, um discurso comestível. O pensar antropofágico. A arte, o design e a gastronomia unidos por um propósito. Não viremos com a discussão exacerbada sobre a liberdade de expressão e as tantas implicações sociológicas do conjugar do ato de comer – são muitos os contextos. Aqui, neste, não cabe tese, mas provocação. Feita de forma artística, e genuína, por Simone Mattar, que não se encaixa num “rótulo” - o quê é; ou - o quê faz. Surpreende, sim, pelo “como faz”, justamente por ser quem é.

Foi durante a SP-ARTE – Feira Internacional de Arte de São Paulo, no começo de abril, em São Paulo, que Trinta e Cinco Fragmentos, da food designer Simone Mattar veio à tona, pela primeira vez, no Brasil, com patrocínio da AIR France. Dentro da proposta, a ponderação sobre a “materialidade da comida como forma de expressão”.

Público interage durante a gastro-performance de Simone Mattar na SP-Arte/ 2016

Público interage durante a gastro-performance de Simone Mattar na SP-Arte/ 2016. Fotos: Érica Araium

Comida bem pensada, sem trocadilho, por quatro jovens gastrônomos convidados a matutar sobre ela (a comida) para que tudo (inclusive o pensar) se tornasse comestível: Naroa Nadales (engenheira espacial, cuidou da produção gastronômica), Gabriela Alves Plata da Silva (especializada em gastronomia e cultura espanhola), Fernando Brito (campineiro, veja só, trabalha no restaurante Dona Maricota, em Valinhos) e Ricardo Flauto (teve passagem pelo D.O.M.).

Mal sabiam parte dos espectadores, até meados da gastro-performance, que quatro delas eram comestíveis – duas delas doces e duas salgadas, planejadas com expertise técnica meses antes e executadas como mandam o vanguardismo espanhol e as técnicas de engenharia. Sabores? 1 - mousse de berinjela defumada, pasta de pimentão com nozes e salada de grãos com pimenta libanesa e romã; 2 – mousse de seis queijos com tomates surpresa recheados de pesto de rúcula ou olivada; 3 – cremaux de chocolade meio amargo, mousse aerado de paçoca e crocantes de pé de moleque; 4 – mousse de curau de milho cremoso, goiabada mole e crocante de cocada cristalizada.

Se o processo de feitura das cabeças foi trabalhoso? Custou muitas cabeças, diga-se. Para as apresentações na SP-Arte, foram produzidas 58, usadas criteriosamente, sessão após sessão. 

Em primeiro plano, uma das 35 cabeças onde foram feitas as projeções. Ao fundo, uma das cabeças comestíveis.

Em primeiro plano, uma das 35 cabeças onde foram feitas as projeções. Ao fundo, cabeça comestível.

“Sou um cozinheiro que consome cultura, por isso me identifiquei muito com a proposta da Simone. Foi um trabalho em conjunto, preciso e desafiador. Usamos técnicas da gastronomia molecular, muitos dos conceitos da arquitetura e bastante elastic sosa (gelatina elástica) na montagem das cabeças. Cada camada levava uma receita diferente, tinha uma estrutura diferente. E foi preciso estabilizá-las. Usar o ultracongelamento até conseguir colocar uma sobre a outra. Monitoramos a temperatura do interior das cabeças constantemente para garantir que, durante a gastro-performance, não haveria qualquer falha na estrutura.  A ideia era que o espectador-comensal tivesse a sensação de que aquela cabeça comestível houvesse sido feita no ato”, lembra Brito.

Para ele, executar o trabalho de forma precisa foi importante. Mais ainda compreender as texturas e os gostos do outro. “Os sentidos das pessoas em torno da mesa, a convivência em torno dela, isso me encanta. Algo que é dito na apresentação em dado momento e que me interessa: - “Nós vamos sacrificar o juízo de Deus. Ou seja, algo que já foi definido pelo criador, e por isso simbólico. Há uma quebra de paradigmas e uma incitação ao pensar quando as pessoas se deparam com algo que não esperam”, pondera.

O cozinheiro Fernando Brito, de Valinhos, zela por uma das cabeças comestíveis da gastro-performance de Simone Mattar

O cozinheiro Fernando Brito, de Valinhos, zela por uma das cabeças comestíveis da gastro-performance de Simone Mattar. "Há uma quebra de paradigmas e uma incitação ao pensar quando as pessoas se deparam com algo que não esperam", pondera ele.
 

Fragmento doce: cremaux de chocolade meio amargo, mousse aerado de paçoca e crocantes de pé de moleque. (35 Frgmentos, de Simone Mattar)

Fragmento doce: cremaux de chocolade meio amargo, mousse aerado de paçoca e crocantes de pé de moleque.

 

 

A EXPERIÊNCIA

 

A cada sessão, até 40 pessoas se acomodavam ao redor de uma mesa em que havia 35 cabeças, esculpidas meticulosamente a partir de cabeças reais – os rostos projetados sobre elas e as vozes ouvidas durante a apresentação puderam até ser vistos interagindo com as tais cabeças comestíveis - naquelas circunstâncias em que os “modelos” assistiram à reação “do outro” durante a gastro-performance. 

Caso do artista colombiano Omar Castañeda, afeito às esculturas e serigrafias; e que questiona, em seu projeto Panela: The New Gold of Colômbia, o valor que se dá à rapadura (como chamamos o doce por aqui, porque na Colômbia é panela) e às relações que se formam em torno do tacho e para além das fronteiras que beiram os tachos.
 

O artista colombiano Omar Castañeda na gastro-performance de Simone Mattar

O artista colombiano Omar Castañeda ou um dos 35 fragmentos da gastro-performance de Simone Mattar

 

A prova dos espectadores era permitida (e, então, incentivada) no momento do diálogo entre as 35 pessoas de culturas diferentes (sim, as cabeças falantes sobre a mesa) em que elas, depois de perscrutarem o conceito gastro-performance, entre falas sensatas e devaneios oníricos, questionavam a própria presença e propunham o “sacrifício como solução”.

Foi engraçado ver a repulsa diante de tomates confitados vermelhíssimos, tal sangue vivo, num semi-breu em que não se sabe exatamente o que se vê à frente. Outros se atrevendo a furar os olhos e aproveitar o chocolate que viria de dentro dele. Ou a estranheza de outro ao tentar, em vão, calar a boca do discurso ao romper a “casquinha do lábio” e ao, finalmente, derreter-se por ela. Genial, repulsivo, maluco, non-sense, antropofágico, artístico, ousado, detestável foram alguns dos muitos adjetivos de quem experimentou, literalmente, o projeto de Simone Mattar. Coisa feita para pensar. Quer ver? 

 

COMO PENSO! E COMO!

 

Simone já tinha feito algo assim, antropofágico, discursivo-provocativo-disruptivo, nas edições de Como Penso Como, que conduziu em São Paulo, em diferentes endereços, entre 2013-2015.

Ali, depois de quatro anos de estudos sobre a história brasileira e a alimentação brazuca, ela idealizara banquetes para poucos – os que quiseram também provar d’arte às garfadas e expressar o comer ao modo Oswaldiano; dentro ou fora dos pratos-tela virginais de sempre. Em 2014, aliás, quem cuidou da harmonização foi a sommelière Gabriela Monteleone, com quem já andamos dialogando também.

Num trecho do manifesto Como Penso Como, a provocação veio assim: “Herde um caderno escrito a lápis | Coloque tucupi no not tucupi | Harmonize a comida com o mundo”. Ah, Simone! Diálogos são todos comestíveis e feitos língua a língua, tête-à-tête para quem quiser devorar além!
 

Simone Mattar apresenta sua gastroperformance 35 Fragmentos na a SP-ARTE/ 2016

Simone Mattar apresenta sua gastroperformance 35 Fragmentos na a SP-ARTE/ 2016

 

O QUE PENSA A GASTROPERFORMER

 

Graduada em design gráfico, design industrial, arquitetura e especializada em gastronomia, Simone atua de forma trans-disciplinar, mundo afora e mundos adentro. Vive pesquisando e compartilhando conhecimento desde a década de 1990. Fundou seu LabMattar em 2008  e já desenvolveu diversos projetos de branding para a gastronomia. E, afinal? O que é gastroperformance? Se quiser se aprofundar e saber da agenda da artista, descubra Gastroperformances.  Se quiser devorar nosso diálogo com ela, continue lendo!

Bem, a parceria entre a companhia aérea Air France e a artista teve início em 2012, quando ela fora convidada a apresentar o arte-coquetel Fome Come!, durante a 30ª Bienal de São Paulo, evento também apoiado pela companhia. A escolha de Trinta e Cinco Fragmentos para a SP-Arte 2016 se deu pelo seu ineditismo no Brasil e pelo fato de a companhia acreditar na art de vivre francesa, que tem entre seus mais importantes ícones a arte e a gastronomia.

Logo depois da primeira apresentação para convidados na SP-Arte 2016, Diálogos Comestíveis conversou com Simone Mattar sobre o novo projeto.

Diálogos Comestíveis (DC) – De certa forma, Trinta e Cinco Fragmentos é uma continuação de um projeto que já vem se consolidando, enquanto conceito e desdobramento, de Como Penso Como. Qual é a sua intenção no provocar de quem experimenta essa performance?
Simome Mattar (SM) – Na verdade, Trinta e Cinco Fragmentos é a materialização de um pensamento que vem vindo desde o Como Penso Como, mas que não estava ainda consolidado. Fiquei um ano tentando entender o que imaginava que era uma proposta visível e palatável, que tinha música e escultura e mais. No momento em que se tenta determinar ser de alguma área, e, então, não se consegue, existe um problema ou algo que não está contemplado. Senti isso tanto em relação à recepção desse trabalho (Como Penso Como), quanto ao tentar me encontrar e estabelecer em alguma área. A solução gastro-performance decorreu justamente da ideia de não me ancorar na gastronomia completamente, mesmo porque a gastronomia não tem condições de me receber. E acho bom isso. Meu trabalho é muito mais uma intervenção dentro da linguagem da gastronomia que uma expressão da arte. E, por isso, foi muito difícil chegar onde cheguei. Queria que a gastronomia entendesse que não me satisfazia o que normalmente era feito (em termos de performance). Ora, o meu interesse é no ato de comer. Então eu insistia em ter um reconhecimento dentro do mundo da gastronomia porque achava que meu interesse era dentro do ato de comer. E é. Mas percebi que a produção acadêmica da área da gastronomia é voltada à antropologia. Persiste sob um olhar machista, do passado, misógino e limitado. Não há, hoje, produção acadêmica ou pensamentos que mesclem o pensamento crítico da arte com a gastronomia, muito embora ambas tenham materialidades similares. A materialidade da comida é mais complexa, e muito mais ampla que a materialidade da arte, aliás. Note. Todas as pessoas do mundo tomam decisões estéticas para fazer um simples sanduíche.
DC - O food styling não seria, nesse sentido, uma ferramenta decorrente do construir dessas decisões estéticas? Muitos chefs se valem do food styling. Uns, no entanto, observam os critérios do food styling, da estética, mas sem levar em conta a complexidade da construção do gosto e da própria gastronomia para que a manifestação artística seja tão complexa quanto a própria gastronomia. Seria isso? 
SM – Sim. Mas o que eu descobri, ou relacionei...  Creio ter culminado em algo mais novo. Há um caminho que é o da linguagem da arte que vem sendo ponderado de forma crítica desde Sócrates (maiêutica). Sim, podemos pensar nos orientais e ir além na história. Tem mil coisas. Mas se pensarmos na história da arte, temos o pensamento crítico onde paradigmas atrás de paradigmas vêm sendo quebrados. A gastronomia ainda não se instalou como linguagem expressiva. Tive de pesquisar muito até ter certeza de que estava trabalhando a mensagem através da comida.
DC – Participaram de Trinta e Cinco Fragmentos quatro cozinheiros bastante jovens. Foi difícil para eles compreender, num primeiro momento, o que era o seu conceito gastro-performance afim de traduzi-lo em cabeças comestíveis? Imagino que o processo de produção, como um todo, tenha sido desafiador.
SM – Foi muito difícil. São nuances muito interessantes. Para uma coisa existir, ela estabelece relações no mundo de várias formas. As formais, burocráticas. Há as contratações, o museu, a galeria etc. Não há nem aparelhamento que possa abrigar esse tipo de pensamento. Você tem uma produção crítica dentro do mundo da arte, a expressão, que não toca, em nenhum momento da história da arte, a gastronomia. Quando você tem a gastronomia dentro do mundo da arte, é um artista que se usa da materialidade da comida para contar a história dele, a expressão artística dele. Para mim, aquilo era estranho. Diziam, por exemplo: - “Aquele artista é parecido com você, ele faz um quadro com comida”. E eu respondia: - “Não. Não é. Fazemos coisas diferentes. Eu não faria o que ele faz”. 
DC – Podemos nos lembrar, então, de artistas como Jackson Pollock, Giuseppe Arcimboldo, Vik Muniz...
SM - Tive de estudar muito até entender o que eu fazia e embasar o meu trabalho para poder existir. Não tenho possibilidade de existência, em todas as formas, até que alguém entenda o meu trabalho. A única maneira que tenho para existir é o pensamento. E quando esse pensamento se materializa, nova luta pela existência. Por que quem apoia, quem acolhe, quem entende, quem compra essa ideia? Os meus cozinheiros não entendem o meu trabalho. E isso é o mundo da gastronomia. Há glamour, há prazer. Persiste mais a arte no sentido que os cozinheiros enxergam. Muitas vezes os chefs de cozinha se inspiram na arte para fazer os seus pratos, mas aí não dão sentido. Veja o caso de Pollock. Eu não posso pensar fazer algo parecido. Porque, afinal, o que quereria dizer com isso?
DC – Gabriel Vidolin, paulista, é um cozinheiro performático. Já ouviu falar dele?
SM – Não o conheço. Já me disseram do trabalho dele. Seria bom conhecê-lo. Mas veja. O meu trabalho, hoje, no sentido de produção de pensamento, está bem embasado. Pesquisei esse caminho sobre o pensamento da gastronomia, e independente do pensamento da antropologia, e eu não tenho nenhuma referência. Quando eu olho para o que acho que faz sentido dentro do mundo da gastronomia, vejo do lado, também, a arte. Não sou aquilo nem isso.
DC – Então, o quê Simone Mattar é?
SM - Sou mais uma das influências do expressionismo numa linguagem. O expressionismo influenciou a dança. Vide Pina Bausch. O expressionismo influenciou Tadeus Kantor, do teatro. O expressionismo influenciou a música. Vários. Mas o expressionismo nunca tocou a gastronomia. Por quê? É um pensamento, não é uma proposta estética.
DC – É mais orgânico, vivo e dinâmico que estático conconceitual?
SM – A base do expressionismo é o fato de não maquiar. O de colocar as coisas como são. É a expressão dura. Então enxergo a gastronomia totalmente maquiada. Quer seja a de alta, a de baixa, a de ilustre ou de desconhecido. É o tempo inteiro maquiagem. Olho para a alta gastronomia e sinto vergonha, porque é totalmente dissociada do mundo real. Dissociada das coisas do mundo. 
DC – Desde Savarin, de Carême?
SM – Então. Mas... Por um lado, se você olhar para o Carême, verá que a paixão dele pela estética de outra área o fez exercitar uma proposta transdisciplinar sem saber. Ele trouxe a pintura, a arquitetura, a escultura para a comida. Uma coisa não é sem a outra. Não dá para somar só. É preciso juntar. Assim acontece. Me interessa muito divulgar um outro olhar para a comida. A comida que é capaz de falar, que vem de dentro, que toca o real. 
 

 

Food Branding e a construção de marcas gastronômicas

 

Vale à pena rever uma palestra que Simone, essa artista multidisciplinar, ministrou em 2011, na 1ª edição do TEDxCampos, evento realizado pelo Senac no Grande Hotel Campos do Jordão. Ali, Simone falava da própria relação com a gastronomia e de food branding - todo o potencial que se pode (e deve) levar em conta quando se pensa na construção de uma marca. Assista

Contexto daquele evento, para quem quer mais motivos para pensar. Alimentando Ideias, Inspirando as Relações Humanas fora o slogan daquela versão local do TEDx (conferência mundial que, desde 1984, transmite experiências e inspira projetos globais). À época, Josimar Melo, então anfitrião do TEDx Campos, lançou seu guia; e o brilhante chef José Barattino, então à frente do restaurante do Hotel Emiliano, defendeu o necessário estreitar da relação entre o pequeno produtor e o cozinheiro.

PS: Conversei com Barattino naquela época. Entendi o que deveria fazer, enquanto jornalista-bióloga-bioquímica-consumidora consciente. E desde então, cri que sempre haveria #MotivosParaDialogar

 

 

 

 

 

Veja, também, a Ópera dos Porcos (2017):

 

 

Ópera dos porcos / Pigs' Opera from Martina Mattar on Vimeo.



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