A função social da gastronomia

A gastronomia é uma espécie de catalisadora das transformações sociais. Uma enzima potente capaz de acelerar o metabolismo de corpo complexo. Iniciativas que levariam anos para serem desdobradas, se impulsionadas por muitas vontades, acabam dando muito - ou mais - certo. Dizer isso para os nomes que circulam neste texto, será óbvio. Para a maioria dos foodies, nem tanto: há chão, muito chão a avançar entre a relevância do registro daquilo que é comestível e a compreensão da cadeia do alimento e dos impactos das escolhas alimentares. É preciso, por isso, reafirmar o óbvio no Brasil pós-moderno e ansioso pelo metaverso: a gastronomia também é catalisadora das transformações sociais.

Veja o caso de "Food for Soul", projeto do famoso chef italiano Massimo Bottura, que ajuda pessoas em situação de vulnerabilidade social. A iniciativa foi documentada em "Teatro da Vida", disponível na Netflix. Lá, fica claro que ela decorreu de outra: o Reffetorio Ambrosiano, uma cozinha de onde saíram as sopas que alimentaram a comunidade que circulava pelos arredores da Expo Milão 2015. Foram utilizadas mais de 15 toneladas de comida reaproveitada e cozinharam com Bottura, pela causa, chefs como Alain Ducasse e René Redzepi.

No Brasil, um cozinheiro célebre por trabalhar em prol de uma causa social é David Hertz, fundador da Gastromotiva e idealizador do Social Gastronomy Movement (SGM), em 2006. No conceito, uma rede global de comunidades locais interconectadas que entende a comida como poderosa ferramenta para a promoção da mudança social. Em março, Hertz recebeu o Prêmio Charles Bronfman, que reconhece líderes inspiradores às próximas gerações. A Gastromotiva é uma ONG voltada à gastronomia que "oferece formações profissionais para que seus alunos se tornem empreendedores, auxiliares e chefs de cozinha, replicadores da sua metodologia. Além de despertar em muitos deles a vontade de se tornarem mobilizadores comunitários, que gerem oportunidades locais e ações de combate à fome em seus territórios". Dentro do projeto, destaque ao Refettorio Gastromotiva, restaurante-escola onde os alunos dos cursos da Gastromotiva no Rio de Janeiro e renomados chefs convidados cozinham juntos, de segunda à sexta, refeições servidas a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Hertz e Bottura, obviamente, já dividiram a cozinha em prol da mesma causa.

Se se pensar no poder da gastronomia à promoção da educação - esse fator transformador de impacto global - é preciso citar, ainda, a Escola de Comer, de Paraty/RJ, em andamento desde 2015. O projeto reúne voluntários, professores, merendeiras, nutricionistas e agricultores familiares para garantir merenda de qualidade para os alunos da rede pública do município. Essa reportagem na FAO é massa: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação: Agroecologia e sustentabilidade: a gastronomia sustentável da Escola de Comer | FAO no Brasil | Food and Agriculture Organization of the United Nations

Até 2020, quando começou a pandemia de coronavírus, os alunos das escolas municipais se empenhavam no cuidado das hortas e faziam refeições saudáveis de fato - compostas por produtos sazonais e locais. Quem idealizou tudo isso, em 2014, foi a chef e empresária Ana Bueno, do Restaurante Banana da Terra, marca com muito propósito que Diálogos Comestíveis atende desde 2019. O projeto é tão bacana que foi destacado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e recebeu o prêmio Responsabilidade Social da Revista Prazeres da Mesa, em 2018.

A gente até poderia explorar mais sobre o projeto de Ana, que desenhou outras iniciativas em Paraty, como o “Mapa do Gosto”, ação social, cultural e turística que possibilitou o levantamento dos produtos e produtores locais e os conectou aos empresários e chefs do município; e o ​projeto "Mulheres da Costeira", em fase de lançamento e que tem como meta capacitar e formar mulheres em diversas áreas e criar uma potente rede de empreendedoras locais. Isso só para citar as investidas mais recentes de Ana.

Mas, dado o contexto, pedimos à comunicadora e cozinheira caiçara para dizer mais sobre a compreensão dela acerca do que é gastronomia social. E, assim, ela elegeria 20 palavras que a conduziriam para este lugar que conhece tão bem, na prática. E nos daria o material ideal para criar uma imagem ilustrativa deste punhado de verbetes. Um vídeo que você pode assistir no YouTube. Curioso, que, desta vez, eles não vieram soltos e despregados de sentido. Circularam como um testemunho-parágrafo de uma longa jornada que, sozinha, Ana não teria percorrido até aqui. Claro. Eureka! Então, ela lançou assim, numa folha de caderno:

"O jornalismo me levou para a cozinha. A cozinha me trouxe para o mundo. Folia Gastronômica, Escola de Comer, parcerias, Mapa do Gosto, Eu Reciclo, Mulheres da Costeira. Sem saber, construí minha independência para "servir" nas escolas, nos campos, nas casas de farinha, junto com as pessoas da minha cidade, do meu pedacinho de Brasil. Mas, atenção para os dois mundos que existem hoje: o real (do ser) e o paralelo (do parecer). A gastronomia social é pela equidade. E é da sociedade. Eu me inspiro no Brasil. Eu me inspiro em cozinheiros brasileiros. Eu não tenho ídolos nacionais, mas espero por eles".

Curioso que para sociedade, o termo "alta" veio acompanhado. E, para equidade, um desenho de coração.

 

Frases da chef Ana Bueno sobre a gastronomia social
Frases da chef Ana Bueno sobre a gastronomia social. Arte: Érica Araium/Diálogos Comestíveis

 

Bem. Neste ponto, também pelo óbvio, faço a aproximação que tanto me apetece entre a comunicação, o jornalismo e a gastronomia. Nas páginas dos jornais, para usar uma expressão bem clichê, cabem muitas iniciativas e vozes. Mas nem todas aquelas bem apuradas circulam. Por outro lado, o jornalismo, que tem um papel social gigantesco, se ladeia à gastronomia: pela fruição de ideias e a mudança de contextos que promove. Ele faz pensar pelo gosto da palavra e dos sentidos. Descreve o que cabe nos nossos pratos e nas parcelas de comedoria.

Aqui, acabo me dando conta de que preciso introduzir uma discussão que trago, com bem mais detalhes, em "Diálogos Comestíveis - porque todo comer é você quem desenha" - lançado em março de 2022 pela Editora Dialética. Repito, ali, o quão importante é educar o gosto desde quando se é criança. E digo que o que se entende por educação escolar (formal) do gosto é algo que se traduz em ações dentro e fora da "academia". Há, aí, a noção de capital cultural como fator de distinção social engendrada por Pierre Bourdieu. Para esse autor:

Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar. (BOURDIEU, 1998, p. 42).

Digo, em meu livro, que esse sistema de gostos e de valores é também “mediado pela linguagem gastronômica “mediatizada”, ou seja, pelo que é transmitido pela mídia como “culto” e “bom”. O jornalismo cumpre, portanto, seu papel de disseminador da cultura - e, portanto, da gastronomia - quando se propõe a contar histórias de transformação do comer como as de Ana, de Bottura, de Hertz. E de tantos outros nomes. Para isso, no entanto, creio que alguém precisa fazer o primeiro gesto. De levantar a caneta. De lançar a primeira pergunta no ar. De botar a circular a energia entrópica que o bom alimento encerra a partir da escuta de repórter. E, assim, a transformar o cru em cozido pela cultura, como atinou Lévi-Strauss.

Se a gente pensar sem se esforçar muito mais, a comida nos leva a crer que a gastronomia, para cumprir seu papel social, depende de ações anteriores, ambientais. Sem biodiversidade não há gente. Não há mundo. Esse é o único caminho à sustentabilidade, como também já se sabe. O caso da Escola de Comer, neste sentido, talvez seja o mais coerente, dentre os apresentados aqui, quando se pensa na construção de uma gastronomia brasileira e sustentável. É, Ana. O jornalismo leva a gente para a cozinha. E a cozinha da gente, para o mundo. Não tem volta.

 

Chef Ana Bueno, do Restaurante Banana da Terra, de Paraty/RJ
Chef Ana Bueno, do Restaurante Banana da Terra, de Paraty/RJ. Foto: Luciana Serra/ Divulgação

 

 

DUAS GUERRAS: TEM GENTE COM FOME

Enquanto o mundo travava uma guerra contra o coronavírus, em muitos países, a fome voltara a atacar (e com muita força) já em meados de 2020. No Brasil, entre desde o início da pandemia até outubro de 2021, nove milhões de pessoas entraram para o mapa da fome – o levantamento mais recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) indicava, à época, que, no total, 19,1 milhões de cidadãos ou 9% da população brasileira passava fome; e que cerca de 116,8 milhões estavam em algum grau de insegurança alimentar — leve, moderado ou grave.

Na quebrada da Vila Medeiros, muita gente brilhou e não morreu de fome graças às iniciativas do casal Rodrigo Oliveira (chef do restaurante Mocotó) e Adriana Salay (historiadora e estudiosa da fome – ela é doutoranda na USP). O Quebrada Alimentada, passou a distribuir quentinhas feitas pela equipe Mocotó à população do entorno do restaurante – foram dezenas de milhares, voluntariamente. Pela atuação, o casal recebeu o “The Macallan Icon Award”, categoria Pasado y Futuro!, concedido pelo prêmio Latin America’s 50 Best Restaurants 2021. A empreitada foi levada tão a sério que o empresário adiou, por consistência e coerência, a inauguração do restaurante Caboco, em Los Angeles. Sabia ele que o momento não era para aplausos, mas suporte aos seus.

 

Adriana Salay e Rodrigo Oliveira: Quebrada Alimentada. Foto: divulgação
Adriana Salay e Rodrigo Oliveira: Quebrada Alimentada. Foto: divulgação

 

Tem gente com fome também na Ucrânia, desde o início dos ataques russos ao território. À frente dessa batalha, entre muitos voluntários, está o chef espanhol José Andrés, do restaurante 2 estrelas Michelin Minibar, em Washington (EUA). Na última semana, a equipe do restaurante humanitário da organização World Central Kitchen na cidade de Kharkivfoi bombardeada. Cerca de 250 mil refeições são servidas por dia no restaurante. Andrés recebeu o Prêmio Coragem e Civilidade de Jeff Bezos e US$ 100 milhões de premiação, em 2021, em parte usados agora, na Ucrânia. Em 2019, Andrés foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz pelo trabalho realizado em áreas atingidas por desastres naturais. Ele está determinado a construir cozinhas temporárias para atender às vítimas de desastres desde 2010. Em 27 de maio, o documentário “We Feed People”, da National Geographic e dirigido por Ron Howard, estreia na Disney+. Ele mostrará os bastidores da World Central Kitchen.

 

 

 

 

 

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