Cozinhar nos tornou humanos. De Homo habilis a Homo erecutus e Homo sapiens, cerca de 2,5 milhões de anos transcorreram e, com um input do latim, etimologicamente, temos a noção de que foi preciso que nos tornássemos hábeis, ficássemos em pé (tais bons bípedes) e nós dispuséssemos a deixar de apenas coletar e caçar para que o fogo, um dos elementos mais “misteriosos”, fosse dominado. Sapiens sábios há 200 mil anos, porém insipidus até entendermos que terra, água, fogo e ar tornam o mundo (con)vivível e comestível.

[UM ARTIGO MÃO NA RODA PARA PENSAR SOBRE A HISTÓRIA DA GASTRONOMIA] heart

 

[O fogo] nos fornece calor nas noites frias; é o meio pelo qual eles preparam seu alimento, pois não comem nada cru exceto algumas frutas … Os andamaneses acreditam que é a posse do fogo que torna os seres humanos o que são e os distingue dos animais. A. R. RADCLIFFE-BROWN, The Andaman Islanders: A Study in Social Anthropology em Wragham, Richard. Pegando fogo: Por que cozinhar nos tornou humanos (Locais do Kindle 23-28). Zahar. Edição do Kindle.

Até adquirirmos cérebros mais densos, dentes mais curtos e eficiência energética baseada em cerca de 2 mil Kcal/dia para transpor oceanos com um estoque de suprimentos em naus nem tanto à deriva assim, passaram-se milhares de anos. Antes, como os primatas e outros tantos mamíferos, gastávamos tempo e energia horas atrás de umas presas; outras tantas com os achados entre as presas. Sem pressa.

E foi mais contemporaneamente que nos habituamos a certos ritos. Segundo o paleoantropólogo norte-americano Rick Potts, há 40 mil anos, por exemplo, passamos a planejar tudo a longo prazo, a explorar longas distâncias, a criar redes de socialização. Logo, foi em função do comportamento (e da socialização) que desenvolvemos certas técnicas.

 

Peixe, na história do nômade coletor caçador

 

Mas, até descobrirmos “o gosto”, na acepção do pai da gastronomia (A Fisiologia do Gosto, 1825), Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), o termo restauração, que alude aos caldos restauradores (boillon restaurant, século XVIII) e aos restaurantes, não fazia assim tanto sentido. Tampouco a noção de que a cozinha palaciana, tão nobre, poderia legar a seus cozinheiros de estirpe de técnica aprumada à rotina do comensal comum, ávido pelo desfrute das elites. Ter um cozinheiro para chamar de seu é algo tão “moderno” quanto a noção de que comida é cultura e, por conseguinte, pertença.

Hoje, em rede, muito silenciosamente entre binários bites e bytes, entre cliques e abas de conversação, ordenamos glamourosas ou casuais refeições em série. Já somos hábeis em acumular energia extra para períodos de hibernação aos quais, nem de longe, estaremos sujeitos. Alguém resolverá o problema “só seu” do próximo rango, até o final desta leitura? Ou, por força do hábito, a petiscaria já dá trégua à ansiedade, "leitor"?

Se a dúvida pairar entre alimentos naturais, minimamente processados e ultra processados, falamos a mesma língua e temos acesso à diversidade de insumos de uma terra brasilis que não passou por guerras de vulto, apresenta dimensões continentais, se guia por faróis e estradas de asfalto e se sustenta, em grande partem pela lógica do agronegócio.

Ora, Michael Pollan, jornalista, escritor, ativista ambiental e autor de diversos livros, entre eles “Cozinhar: uma história natural da transformação” (2014, Zahar), pondera justamente sobre o absurdo que é legar a terceiros, quase invariavelmente neste tempo urgente de hoje, o preparo das refeições – e, portanto, legar a construção do comer e do gosto a outrem. Afastar-se do ato de cozinhar é afastar-se do pensar sobre o que significa alimentar. E, portanto, distanciar-se do que significa alimento.

Pensata essa também proposta por Carlo Petrini, jornalista italiano idealizador do movimento Slow Food (1989) e escritor. E alardeada, bem mais cedo, por Claude Levi-Strauss (1909-2009), o “antropólogo da cozinha” (vide O Cru e o Cozido, de 1964).

Para Strauss, segundo o sociólogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Dória (outra sumidade dentre os teóricos que quaisquer pretensos cozinheiros devem conhecer), “as coisas “cruas”, naturais, são transformadas em coisas “cozidas”, culturais, para de novo voltarem à natureza sob a forma de “podres”. Essas relações entre cru-cozido-podre Strauss chamou de “triângulo culinário”. 

Se transpusermos o sentido do comer histórico para cá, veremos que é preciso compreender a integralidade do alimento in natura para que nos apropriemos de técnicas capazes de transformá-lo, em determinado contexto, em insumo, em ingrediente e, por fim, em uma mensagem repleta de significados. Em uma história empratada. Em cultura de comer com as mãos.

Pollan questiona, com brio: - “Por que justamente no momento da história em que os americanos estavam abandonando a cozinha e delegando à indústria de alimentos o preparo da maior parte das refeições começamos a passar tanto tempo pensando sobre comida e assistindo a outras pessoas cozinharem na TV? Parecia que, quanto menos cozinhávamos no nosso dia a dia, mais a comida e seu preparo por mãos alheias despertavam nosso fascínio. Nossa cultura parece estar no mínimo indecisa em relação a esse assunto”.

Fato é que, ao mesmo tempo em que vimos a gastronomia se popularizar – e não apenas enquanto termo, mas discurso, com auxílio global e multimídia – notamos que “as leis do estômago”, tradução literal que se poderia fazer do verbete “gastronomia”, originário do grego -, vimos que a determinação do que será “consumido” deixou de ser individual e complexa para coletiva e pasteurizada. Está chovendo hambúrguer. E, em breve, salsicha feita em laboratório.

É também de Pollan a frase célebre repetida à exaustão pelos mesmos chefs hype da onda vegana-vegetariana assimilada como tendência neste início de terceira década século 21. “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. Num contexto em que temas como aquecimento global, crise hídrica, insegurança alimentar e desperdício pululam frente às multitelas que acessamos para partilhar o mundo, cozinhar de forma sustentável e conectada à noção de perpetuação da espécie realmente sábia e sápida nunca fez tanto sentido.

A gastronomia evoluiu. Um cozinheiro que se vê parte da cadeia produtiva precisa sair em busca do terceiro prato, como propõe o chef estadunidense Dan Barber (dos restaurantes Blue Hill, de Nova York) e executa, à maestria, gente da mesma laia, como René Redzepi (Noma, em Copenhagen, Dinamarca) e Virgílio Martinez (Central, em Lima, Peru).

Ao mesmo tempo, a indústria alimentar que, desde os anos 1940, impelida pela velocidade das transformações do pós-guerra, detecta problemas (às vezes criados por si mesma) e busca soluções (muitas vezes em benefício próprio), por meio de muita pesquisa e desenvolvimento, para alimentar bilhões de pessoas.

A Organização das Nações Unidas estima que, em 2050, seremos de mais de 9,8 bilhões de pessoas. Serão 83 milhões bocas para alimentar por ano, até lá, de acordo com o World Population Prospects: The 2017 Revision. Se as estimativas estiverem corretas, em 2.100, seremos 11,2 bilhões de pessoas. A escassez de alimentos afeta atualmente 815 milhões de pessoas.

 

Pão, alimento da partilha e do diálogo.

 

 

Se cozinhar nos tornou humanos, como deixar de cozinhar nos afeta?

 

"Quando pensamos que 27 minutos é menos que o tempo necessário para assistir a um único episódio de Top Chef ou MasterChef, percebemos que existem hoje milhões de pessoas que passam mais tempo vendo refeições serem preparadas na TV do que efetivamente cozinhando. Nem preciso dizer que a comida feita na TV não é aquela que acabamos comendo. Michael Pollan em “Cozinhar: uma história natural de transformação” (2014, p.11)

Se cozinhar nos tornou humanos, como Homo cyberneticus (com chips integrados), Homo hybridus (mutados pela nanotecnologia) e Homo machinus (conectados à internet), projeções do matemático inglês Ian Pearson, perpetuarão o que entendemos por memória afetiva?

Complexa enquanto verbete, definida nos dicionários como substantivo feminino para “o conjunto de conhecimentos sobre a arte de cozinhar”, pressupõe multidisciplinaridade, diálogo, amplidão. Abraça a tecnologia, que fala grego, também: tékhné significa arte, habilidade ou arte manual e “logia” é o estudo de algo. Nada exígua, portanto, a gastronomia comporta quereres.

 

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