E depois do Corona, chef?


Tecer previsões acerca do cenário pós-Covid 19 é temerário. Esses futuros imaginários a la Richard Barbrook são coisas para gente genial como ele ou Marshall McLuhan ou Pierre Lévy ou Martha Gabriel - caras e mina da comunicação que reverberam em qualquer meio e mensagem. Com ajuda do food design e de todas as portas que abrimos até aqui, porém, nos arriscamos um pouco mais. Dá então para rabiscar uns rascunhos de cenário/ paisagem desse admirável mundo M.U.V.U.C.A. novo - muvucado e mais volátil, incerto, complexo e ambíguo. Fizemos até vídeo sobre isso aqui e disponibilizamos no IGTV. E depois do Corona, chef? Os hábitos de consumo foram atualizados da noite para o dia, acostume-se rápido ao "novo normal".

Pois para a gastronomia, o food service, a restauração e mais, tem-se um esboço de novidade potente aos cozinheiros que, antes do reset proposto pelo "corona" (a gente fala do vírus como se fosse um colega), já se propunham a correr mais devagar entre chuvas de dados binários entregues via delivery e culturas mais orgânicas. Em outras palavras, está um passo adiante o gestor/ head chef criativo cujo mindset artesanal/ do it yourself/ disruptivo e circular fora cunhado genuinamente (sem o envoltório de maketing cheio de blá-blá-blá, vulgo storytelling estrito).

 

Medo do coronavírus, restaurantes fechados: o que desenhar para o comer de já, já?

 

Dominar a noção de semear, plantar, esperar, colher, criar e empratar faz tanto sentido agora quanto fizera no início da nouvelle cuisine, lá nos anos 1970. Comida sem excessos de afetação ou de máscaras, honesta, coerente, estética, moderna, saudável, sazonal, natural, integral e transdiciplinarmente criada, minimamente desperdiçada: sabe como é?

Aquela afetada por correntes de pensamento diversas que já alertavam ao aquecimento global, às consequências do uso da tríade fertilizantes-agrotóxicos-transgênicos, à nocividade da preponderância do ego dentro das panelas de pressão das cozinhas temperadas pela opinião pública e guias e prêmios internacionais. Será, no entanto, que o sistema agropecuário atual dará conta de lidar com demandas antecipadas de consumo?

Não sabemos se as ponderações a seguir encontrarão eixos de aferição adiante, mas bora conjecturar algumas mudanças importantes.

 

Cozinhar, ato natural de transformação. Fotos: arquivo Diálogos Comestíveis
Cozinhar, ato natural de transformação. Fotos e artes: arquivo Diálogos Comestíveis

 

O usuário que mal quebrava um ovo (que dirá fritá-lo) se viu impelido a vivenciar a alquimia da cocção e a comensalidade. Ainda que intermediado pela câmera do celular, cozinhou para familiares, seguidores e fãs - na Páscoa, fez live, certeza. Passou mais tempo no lugar mais quente e cheiroso da casa - e mais propício ao domínio dos temíveis "germes". Pôs-se a considerar novos amigos e inimigos invisíveis e entendeu que o tempo era o principal ingrediente que faltava a muitas relações.

Quem fez seu próprio pão ou cerveja, criou seu próprio levain (foi a espécie de "tamagoshi" desta quarentena) e alimentou alguns Lactobacillus vivus fazendo picles com vegetais "bons para isso" (os feinhos e murchinhos, uau, nunca fizeram tanto sentido, diga aí!) transitou entre podres (amargos) e crus com certa autonomia e berrou - "Eu sou fo**d@"! Em sã consciência, preparar uma refeição do "zero" nos dá condições à valorização do ofício cozinheiro - vai-se pensar cinco ou seis vezes antes de se comprar comida pronta ou preparada por mãos alheias; mesmo a premiada, mas meramente embalada em conceito e discurso.
 

Distanciamento social Covid-19

 

A germofobia, aliás, seja talvez uma questão a lidar daqui em diante - do espaçamento dos "preocupantes" apertos de mão ao evitar-se a intimidade dos beijinhos na bochecha do bom dia à reordenação das mesas. Vamos socializar de outras maneiras.

Ora, a pergunta "quantas pessoas manipularam minha refeição", que deveria ser feita e respondida pela rastreabilidade, deve vir à tona com mais força. Selecionar alimentos disponíveis localmente e em suas épocas, higienizá-los, porcioná-los, cozinhá-los e etc, processos rotineiros de quaisquer cozinheiros, passa a virar hábito, finalmente. Abusar da água e sabão, do álcool 70%, do hipoclorito de sódio, idem. Quem estudou um pouquinho sobre conservação de alimentos e microbiologia sabe exatamente o poder de seres como a Escherichia coli e o Staphylococcus aureus a ponto de questionar a limpeza duvidosa de um espaço deveras sujo como a cozinha.

Neste sentido, a indústria de alimentos deu provas (mais uma vez) de dar conta do recado de alimentar (não necessariamente de nutrir), com segurança, bilhões de pessoas - não vamos entrar na discussão sobre a fome, desta vez, tema largo e severo. Basta sugerir que assista ao distópico O Poço (Netflix, 2019), leia diversas notícias (se é fake, não é news, tá ok?) e pense sobre o privilégio de poder "escolher" o que vai comer e contar com um sistem público de saúde em seu país (#vivaosus).

 

Sindemia: pior que a pandemia

 

Fato é que os ultraprocessados que já vinham em questionamento, contudo, devem ser mirados pelo olhar mais criterioso do consumidor que cozinha com critério e se vê como parte da cadeia de alimentos - ou neoconsumidor -, que passou a demandar coisas "improváveis como fermento", farinhas e grãos orgânicos integrais numa "descabida" proporção interessante. Na era do antropoceno, contudo, o legado dos maus hábitos alimentares de antes preocupa mais que o coronavírus e seus pares de SARS, sobretudo nos países desenvolvidos.

Nos Estados Unidos, veja, houve escalada do "consumo de bebidas alcoólicas, massas, comidas enlatadas, fermento e maconha (nos estados em que a substância é legalizada), ao mesmo tempo em que aumentou o período de sono e despencou o de exercícios físicos" situa reportagem do jornal Folha de S. Paulo.

Vivemos "The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change", a "Sindemia Global de Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas”, de acordo com relatório do respeitado periódico The Lancet.  temos doenças crônicas não-transmissíveis a resolver pela boca, com a ajuda do garfo e da faca.

 

Ação ou abstração? Sindemia ou saúde?

 

Comer mal significa gerir mal os recursos naturais. Demandá-los em excesso nos leva a produzir griponas - o coronavírus talvez seja apenas uma delas. Nesses dias de isolamento físico decretado (social, não seria correto dizer, pois socializamos como nunca com uso da WWW e das redes sociais), li o estudo "Big Farms Make Big Flu", do pesquisador estadunidense Rob Wallace - em tradução livre, "Grandes Fazendas Produzem Grandes Gripes". Em suma, ele trata dos equívocos do modelo predatório do agronegócio em voga, alerta sobre as consequências do desequilíbrio ecológico causado pelo desmatamento e produção em larga escala de animais para alimentação (commodities confinados, imunodeprimidos, hospedeiros ideais a vírus como o Covid-19).

Alimentar-se de espécies exóticas de plantas e animais, como morcegos, cães, gatos e insetos, hábito de muitas culturas, não parece algo muito "seguro" (no sentido estrito) neste momento, convenhamos. Há teorias da conspiração e obviedades a decretar o "evite". Se recorrermos à neurociência, veremos que a mente (psique) também levará o cérebro (a razão) a ponderar sobre escolhas mais conservadoras ou "familiares" ou emocionalmente pouco traumatizantes. Deve haver maior resistência ao desconhecido por um certo período? Creio que sim.

 

DISTÓPICO, MAS NEM TANTO

 

Tá. Dias antes do início da quarentena, assiti a Years and Years, série original da BBC/HBO (2019) e delirei com outras possibilidades do que comeríamos em 1 mil dias, ou em 10 anos ou 10 mil dias. Em março, levei essa discussão ao palco da mediação de um debate no Food Female, evento  da Food Pass, motivada a pensar no significado da expressão "mercado plant based" - everything based in plants, come on, pois virou um baita mercado de fato. Mas a que preço ambiental e sanitário?

Na série da HBO, a comida "futurista", à base de plantas ou substâncias desenvolvidas em laboratório, estava tão tangibilizada na tela quanto estão, no Burger King ou supermercados, iniciativas de marcas como Impossible Foods ou Fazenda Futuro, respectivamente. Já habemus linguiça à base de plantas, mas ainda não a nomeamos de outra forma que não "linguiça" - o marketing sabe que a semântica nos ajuda a aceitar certas coisas por similaridade e identificação de sons, de sentidos, de imagens mentais. Temos carnes vegetais que sangram, embora sejam à base de beterraba, ervilhas e soja, OMG

 

 

Também deu para vibrar com o "Signor" de Years and Years, assistente virtual tal e qual Alexa, inteligência antificial utilíssima em tempos de home officce, compras on-line, ultraconectividade e escolas em modo remoto por tempo (in)determinado. Fazer as listas de compras e os pedidos do I-Food com a assistente virtual da Amazon seria temerário se o 5G já estivesse entre nós, tão interativos e participativos com as coisas dentro de casa. Pondere o que seria das empresas de entrega se os drones já pudessem circular no espaço aéreo de forma organizada - e numa época em que as aeronaves de todo o mundo estão em solo. De acordo com o site especializado em aviação FlightRadar24, a oferta semanal de voos domésticos no Brasil despencou de 14.781 para apenas 1.241 desde o fim de março até o dia 10 de abril. E se a gente pudesse receber pizza via drone nesta pandemia? O que seria da privacidade e da segurança dos dados dos usuários? E se esse fosse um recurso à disposição dos restaurantes? Só pense.

Ao mesmo tempo, o #FicaEmCasa tem efeitos tão positivos para o meio ambiente que olhar para céus e águas mais límpidos, cre-se, terá efeitos de conscientização acerca do consumo de energia e as emissões de gases. Em apenas duas semanas de isolamento, houve queda de pelo menos 25% na emissões de dióxido de carbono (CO₂) na China, de acordo com o Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo (Crea), com sede nos Estados Unidos; algo que corresponde à minimização dos danos mundiais em 1%. Neste sentido, qual o potencial a ser recuperado pelas indústrias turística e hoteleira, tão afetadas pela pandemia? Quantas experiências incríveis poderiam voltar a ser vividas de maneira mais organizada e consciente?

Esse papo super futurista já havia sido trabalhado em artigo publicado aqui, a revista ComCiência e no Museu do Amanhã. E em outros artigos relacionados à comunicação e à indústria 4.0, caso deste outro, desdobrado em entrevista para a rádio CBN de Campinas/SP.  Aqui a ideia era discorrer sobre os poréns e os senãos do comer do futuro - é você quem desenha isso, sempre - e mapear algumas tendências para a restauração daqui por diante. Fomos além? wink

 


Algumas apostas de Diálogos Comestíveis


O modelo de restauração mudou, adapte-se - menos mesas, menos insumos importados, mais insumos locais/ nacionais, mais técnica e menos desperdício. 
Abandono do excesso e da afetação - "comer fora" deixará de razoável para a maioria das pessoas e ganhará contornos de celebração/ ocasião especial. Viveremos uma era de "encapsulamento" em torno da família, valor essencial - entenda família como reunião de queridos, não de membros de uma mesma árvore genealógica, necessariamente.
Cozinhar em silêncio, ato de transformação - o cozinheiro profissional voltará ao lugar central, a cozinha. Uns pouquíssimos voltarão a cozinhar para poucos (de volta ao conceito inicial da haute cuisine, século 18, de ego para ego); e uns muitos tornarão o comer mais justo, em todos os sentidos (de ego para eco). Cozinhar é sobre pessoas, tem-se priorizada a função social da gastronomia. 
Neoconsumidor consciente e exigente - o comensal, mais sem grana que nunca, próximo da noção de saudabilidade, do não desperdício e do aproveitamento integral dos alimentos, estará  disposto a pagar um valor muito menor pela versão empratada ou compartilhada que houver. Não se comia e não se comerá conceito.
De pé, ecogastronômicos - Resistirão os restaurantes que, antes da pandemia, já agiam de forma mais conectada à lógica da ecogastronomia e atentos ao que pode a ode perversa de manter-se um consumidor mimado.
Delivery aprimorado em tempo real - As plataformas de entrega de comida serão aprimoradas a valer se houverem lido demandas e sugestões de correção do usuário legadas durante a pandemia. Para embalagens, premiações, raio de entrega, conduta do entregador e porcionamento correto vieram aos montes. Dá para customizar e escalar ao mesmo tempo?
And the "Oscar goes to" - Os prêmios e guias de vulto passam a fazer menos sentido. Afinal, o que querem os comensais agora além de experiência única e empatia de fato - e não storytelling excessivo?
Sem reservas - Para onde irão os críticos de gastronomia que nunca entenderam de gastronomia, mas de comer e de "recebidos"? A ver. E os super críticos - que não se mobilizaram ainda? A ver. 

 

Tendências pós-Covid 19 para a gastronomia

 

Confira mais neste vídeo.

 

Direto da fonte

Saiba mais sobre as demandas de bares e restaurantes brasileiros durante a pandemia: https://abrasel.com.br/
Participe do movimento #AjudeUmButeco da Cervejaria Bohemia: https://www.ajudeumbuteco.com.br/
Nestlé, Nespresso e Stella Artois se uniram na plataforma "Apoie Um Restaurante": leia.

 

 

 

 

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